segunda-feira, outubro 13, 2008

Exposição fotográfica (V)

Todas tiradas em Preston, em Inglaterra, em Julho de 2004, com uma Sony Cyber-shot P72 de 4 MPx. Uma cidadezinha notável para quem gosta de cor.


domingo, outubro 12, 2008

Não é santo quem quer

Vasco Pulido Valente – de seguida VPV para poupar o teclado, indiscutível campeão nacional da maledicência científica, categoria pesos pesados e versão “world series”, meio século de carreira e vinte anos de solitária liderança, ao pé do qual os do “Eixo do mal”, os da “Noite da má-língua”, a bancada do Bloco de Esquerda e o Paulinho das feiras – já para não falar de mim próprio – não passamos de garotos imberbes, aventurou-se por razões incógnitas a dizer bem de alguém e espalhou-se. Tinha que ser.

Na sua crónica de sábado último no Público, VPV dá uma mãozinha ao Papa Bento Ratzinger, que veio recentemente a público defender o seu precursor Eugénio Pacelli, “aka” Pio XII, das bordoadas de certos historiadores que o acusam de leniência ou cagarolice, consoante queiramos manter o nível da conversa, diante dos regimes fascistas e nazis que atingiram o pico da folia durante o seu pontificado.

Com o rigor dos factos que o caracteriza, VPV explica que, diante das perseguições dos nacionais-socialistas aos católicos do sul da Alemanha, Pacelli negociou naturalmente com Hitler uma concordata em que trocou o silêncio da Igreja para defender os seus bens materiais e o direito de culto, de ensino e de assistência. Que embora protestasse em privado contra as facinorosices de Hitler, não o fazia em público, por pensar que tal contribuiria para ainda mais violência. Que, informado, não disse uma palavra sobre os massacres de judeus e só tardiamente e em pequena escala permitiu que a Igreja protegesse alguns deles. Conclui VPV do seguinte modo: “Só que Pio XII punha o interesse da Igreja institucional à frente de qualquer outro. E, com prudência, com astúcia e uma diplomática abstenção perante os males deste mundo, chegou a 1945 com uma igreja forte e quase intacta. O que faz dele um político de talento e um santo difícil de engolir.”

Santo? Ena, pá! É o que dá ser Papa. Houve outros que tentaram a mesma abordagem “soft”, tão “naturalmente” como Pio XII, se calhar imbuídos das mais prudentes razões políticas, e que acabaram nos manuais escolares como frouxos e otários, como o Chamberlain e o Daladier, ou como traidores, caso do Pétain. E possivelmente com toda a justiça, porque até o próprio Daladier, quando foi aclamado pela multidão no retorno de Munique, terá dito a quem com ele estava: “Ah! Les cons!”.

Para VPV (e aparentemente para Bento XVI), no limite, o papel da Igreja diante dos males do mundo dos homens (“este mundo”, que parece não ser o da Igreja) resume-se “naturalmente” a preservar a sua base material e política, e não a intervir em defesa dos que sofrem e em favor de um conceito de Bem. Tem que se ser, antes de tudo, prático. Lembra-me outro Bento, este também Paulo: o importante é haver muita tranquilidade.

Quem me ajuda a contrariar tão fraca tese?

Talvez São Paulo, na sua carta aos Efésios: “Por isso vesti a armadura de Deus para que, no dia mau, possais resistir e permanecer firmes, superando todas as provas.” Ou ainda, na segunda carta aos Coríntios: “ Este é o nosso motivo de orgulho: o testemunho da consciência de que nos comportámos no mundo, […] com a santidade e sinceridade que vêm de Deus.” Ou, finalmente, na carta aos Filipenses: “Uma só coisa: comportai-vos como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Deste modo, indo ver-vos ou estando longe, que eu oiça dizer que estais firmes num só espírito, lutando juntos numa só alma pela fé do Evangelho, e que não temeis os vossos adversários.”

Talvez Jesus Cristo: “ … sereis presos e perseguidos; entregar-vos-ão às sinagogas e sereis metidos na prisão; sereis levados perante reis e governadores, por causa do meu nome. Isso acontecerá para que deis testemunho. Portanto, tirai da cabeça a ideia que deveis planear com antecedência a própria defesa; porque Eu vos darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater. Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não perdereis um só cabelo. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida.”


Ou o mesmo Cristo, quando se sacrifica para nos salvar a todos, incluindo por dever de ofício o Pacelli, o Ratzinger e o VPV.

Firmeza diante da adversidade. Orgulho na consciência. Dignidade diante dos opositores. Testemunho. Naquela época difícil da Segunda Guerra, felizmente houve muitos, crentes ou ateus, que encontraram nestes conceitos a força para fazer melhor figura que o Papa Pio XII, senão a coisa podia ter corrido ainda pior.

Cristo teria certamente perdoado a Pacelli pela fraqueza e a Ratzinger pela hipocrisia. Afinal, nem todos são da massa de que são feitos heróis ou santos. Como nem todos possuem a arte do elogio. Por isso, VPV, não afagues. Limita-te a desancar.

domingo, outubro 05, 2008

Exposição fotográfica (IV)

Todas tiradas na Casa da Música, no Porto, em 21 de Março de 2008, com uma Canon 400D.



Guindaste 1.

Guindaste 2.

A floresta.

Os raios azuis.

Os cabides.

A nona arte

O jornal Público, que quando toca a acompanhar os seus jornais de “ofertas” prima pela excelência das colecções, vai lançar a série completa dos trabalhos de Edgar Pierre Jacobs, o criador de “Blake e Mortimer”. Ao tomar conhecimento desta boa notícia, veio-me à memória uma missiva que escrevi há tempos a uma pessoa que, julgava eu, não gostaria de banda desenhada. A carta acompanhava a minha prenda aniversariante a esse bom amigo: três volumes escolhidos da melhor “bêdê” ou, porque não dizê-lo, da melhor literatura, a ver se o endoutrinava.

É esse texto que segue aqui abaixo, só com pequenas adaptações, num testemunho da minha gratidão pelo muito que me trouxe a nona arte e a excelência dos seus mestres.


“Caro …,

A minha mãe tem um hábito prudente e algarvio de gabar previamente as prendas que dá, não vá o recipiente passar ao lado da valia do embrulho que lhe estão a pôr nas mãos. Mania que nunca lhe critiquei e que só desta vez vou imitar para dizer bem destes livros. Eles merecem.

Sei que não aprecias muito Banda Desenhada. Pois eu decidi oferecer-te uma prenda de que não gostas, mas cheio de fé de que gostarás. Estes três volumes têm a difícil mas provável missão de te fazer mudar de ideias e de te abrir as portas de um mundo novo, rico de humor e tragédia, de fantasia, de luta, de sonho ou de mensagem. Neste caso são volumes, enfim, “sérios”, mas podiam ser também “cómicos”, de um Goscinny, de um Gotlib ou de um Franquin. Vinha dar ao mesmo.




A “Balada do Mar Salgado”, do italiano Hugo Pratt, é a primeira e uma das mais célebres histórias da sua principal criação, o marinheiro Corto Maltese. Nascido em La Valetta, filho de um marujo inglês da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar, Corto cresceu no bairro judeu de Córdoba e vive, quando lá vive, na Antígua ou em Hong Kong. Em jovem, cortou com uma faca a sua linha de vida, na palma da mão, traçando ele próprio o seu destino.

Destino esse que o leva a encontrar-se permanentemente com a História, por vezes num palco principal, muitas num canto escondido, quase sempre discreto mas sempre do lado do mais fraco, mesmo quando este está votado à derrota. Apesar do seu cinismo quase diletante, que usa como ferramenta de sobrevivência do mesmo modo que refere a sua imperial cidadania britânica, Corto Maltese é um herói romântico, que aceita com naturalidade o seu papel nos acontecimentos com que se cruza, sem os evitar mas também sem se apropriar deles. É um homem vivido, um lobo solitário e só, um alforge de qualidades que gostaríamos de ver nos nossos filhos: bravura, solidariedade, caridade, amizade, inteligência prática.

As histórias de Corto Maltese ocorrem num período que abarca o antes, o durante e o depois da primeira Guerra Mundial, quase sempre num cenário conturbado de conflito ou guerra. Cobrem uma monumental diversidade geográfica, do Pacífico à Irlanda, da Sibéria ao Império Otomano, de África a Veneza. Vão de um grande realismo a incursões pelo fantástico, sonhado ou mesmo mágico. Nelas, Corto Maltese vai-se travando de amizades com assassinos e professores universitários, com feiticeiras de “vudu” e ricos herdeiros, com militares britânicos e selvagens negros, ou seja com quem quer em quem ele identifique o bem essencial por contraponto a qualquer aparência mais enganadora. Esta miscelânea reflecte a crença do autor de que não têm valor as diferenças ideológicas, religiosas ou nacionalistas e de que algo bem mais profundo une todos os homens, mesmo quando por trás os cenários se desagregam e os separam.

A “Balada do Mar Salgado” começa por ser uma história de piratas trabalhando para um misterioso personagem, “o Monge”, que traz uma nota de fantástico e aproveita a envolvente da primeira Grande Guerra no quadro inesperado dos Mares do Sul. Pouco a pouco, a “Balada” vai evoluindo para uma bela história de amizade e amor, em que as fortes relações que se vão construindo acabam por ser mais importantes que os belíssimos panos de fundo de um exotismo exuberante que é tão característico de Pratt.

Nota, neste volume, o recorte cinematográfico dos planos, de que é exemplo a pungente sequência da página 187, com as lágrimas de Pandora, que sempre me comoveram tanto como as da Debbie Reynolds na cena final do “Serenata à Chuva”: “Hey! Stop that girl!”. O desenho de Pratt é rápido, por vezes só aparentemente tosco, mas de uma grande eficácia. As personagens podem ter uma subtil expressividade, como na serenidade triste de Pandora despedindo-se, na página 198, ou no olhar malévolo de Rasputine por detrás de um livro, na página 38.

O trabalho foi originalmente desenhado só a tinta-da-china e colorido numa edição já muito posterior. Talvez a versão a preto e branco seja superior (podes vê-la cá em casa). Ainda assim, muitas imagens desta nova edição guardam a memória do original: o mar negro em que voga o catamarã na página 38, as cenas de naufrágio nas páginas 61 a 63, com as gaivotas brancas esvoaçando no céu de breu ou as cenas subaquáticas das páginas 100 a 102, em que as formas se decompõem num zebrado surrealista.

Corto Maltese é um personagem invejável de referências culturais. Se pode lembrar os grandes clássicos de juventude, como Stevenson ou Jack London, pelo lado aventuroso, a riqueza, o colorido e o inesperado das personagens vão buscar ao estranho mundo de um Jorge Luís Borges e à sua “História Universal da Infâmia”, roteiro de bons e maus piratas. A edição que te ofereço contem um intróito onde encontrarás, para além de imagens referentes aos Mares do Sul, uma explicação do próprio Hugo Pratt e um ensaio de Umberto Eco, como que confirmando que “les bons esprits se rencontrent”.


“A Marca Amarela” é uma obra-prima noutro estilo. O seu autor, o belga Edgar P. Jacobs, ocupa na BD o lugar que na literatura pertence a Verne, a Wells ou a Bradbury. Com uma longa carreira de desenhador e argumentista, Jacobs só produziu oito livros da série “Blake e Mortimer”, um dos quais não terminou antes de morrer. Todos são livros de primeira linha: “O segredo do Espadão”, “O mistério da Grande Pirâmide”, “O enigma da Atlântida”, “A armadilha diabólica”, e por aí fora. Jacobs escreve e ilustra uma ficção científica quase realista, só uns anos à frente do passado, que com o passar do tempo ganhou uma soberba “patine”, tornando-se um futuro que nunca aconteceu.

Uma das razões pelas quais Jacobs publicou tão pouco está no rigor que pôs no desenho dos cenários. Muitos destes, como por exemplo de uma casa, podem resultar de centenas de fotografias, tiradas pelo próprio ou recebidas do Cairo, do Afeganistão, de onde fosse. Construiu maquetas de objectos ou bustos de personagens para se certificar que a sua representação era a correcta sob qualquer ângulo. Redesenhava diversas cenas sob outras perspectivas, que não iriam ser publicadas, apenas para verificar a sua coerência. Certa vez esteve três semanas com o trabalho parado, à espera de fotografias dos caixotes de rua em Tóquio – detalhe importante. Neste aspecto lembra o escultor que talhou o “Auriga”, na Grécia Antiga: embora a estátua estivesse colocado no topo do frontispício de um templo, só visível da cintura para cima, todo o resto do corpo, e sobretudo os pés, está esculpido com uma impecável perfeição, porque se é para se fazer bem, é para se fazer bem!

Esta representação perfeccionista, associada ao facto de a narrativa ocorrer sempre num futuro quase presente, permitem que Jacobs aborde temas fantásticos “clássicos” sem cair na exuberância barroca da grande maioria dos outros autores. Sobriedade é a palavra de ordem, e Jacobs descreve civilizações perdidas, guerras holocáusticas, viagens no tempo ou homens artificiais como quem pinta cavalheiros de gravata a fumar um charuto após o jantar. Enquanto Hugo Pratt traz o exotismo da Polinésia para falar de corriqueiros amores e desilusões humanas, Edgar Pierre Jacobs usa de sobriedade para nos mostrar Mortimer a fugir de um “Tiranossaurus Rex”, depois de uma avaria na máquina de viajar no tempo. Nas palavras do próprio, “em ficção científica é preciso saber até onde se pode ir longe demais”.

Os heróis, o Capitão Francis Blake e o Professor Philip Mortimore, perfazem o modelo ideal e idílico do gentil homem britânico: cultos, educados, corajosos, dedicados ao bem comum, leais, patriotas, honrados e sempre impecavelmente compostos (excepto se perseguidos por “Tiranossaurus Rex”). Partilham uma amizade viril, num mundo tipicamente masculino como é o da banda desenhada franco-belga dos anos 40 a 60, em que a sexualidade das personagens era totalmente mitigada e substituída pela amizade, sentimento mais adequado a rapazes em formação (a BD não era na altura leitura própria para meninas). E assim temos Tintin e Haddock, Astérix e Obélix, Spirou e Fantasio, Alix e Enak, etc., para além, claro, de Blake & Mortimer. Só depois do Maio de 68 e da revolução sexual que se lhe seguiu, o sexo feminino – e o sexo “tout court” – entram na banda desenhada, com namoradas ou amantes dos heróis, com companheiras de aventuras ou com heroínas a título próprio. Nessa altura, a situação destes heróis misóginos foi revisitada, levando a sugestões, sem dúvida exageradas, de homossexualidade latente entre as personagens. Talvez por isso, os argumentistas e desenhadores que continuaram a série após a morte de Jacobs, e que tiveram sempre uma preocupação extrema em respeitar as temáticas, a tipologia da narrativa, o grafismo, os enquadramentos, o colorido, etc., originais do mestre, optaram por humanizar (ou melhor – “mulherizar”) neste aspecto um pouco a série: Blake e Mortimer passaram a ser mais sensíveis aos encantos femininos e surgiram revelações de amores de juventude. Em qualquer caso, Blake & Mortimer são personagens de outro tempo ou, melhor, do nosso imaginário sobre outros tempos.

Philip-Edgar-Angus Mortimer nasceu em Simla, na Índia, filho de um médico escocês do Exército Britânico das Índias. Aos onze anos, rumou à Escócia onde estudou nas melhores escolas até um BSc, após o que se especializou em física nuclear no M.I.T. e em Berkeley. Fino currículo, portanto. O seu saber não é facilmente confinável. É o investigador humanista, aberto a todos os problemas que se lhe deparam. Acumulando a ciência com a acção, Mortimore é um homem robusto com experiência de boxe, judo e karaté, o que lhe é bastante útil em muitas das situações delicadas a que o seu carácter impulsivo e a sua intransigência em questões de honra o estão sempre a atrair. Bebe Cardhu e fuma Virgínia no seu cachimbo.

Francis-Percy Blake nasceu em Llangowlen, no País de Gales, filho de um coronel do corpo de Reais Fuzileiros Galeses. Oriundo de uma família notável de militares e homens de lei, Francis preferiu a carreira castrense. Assim, após estudos em Eton, entra para o “Staff College” da “Royal Air Force”, de onde sai já com o grau de capitão. Segue-se a R.A.F. e depois a “aeronaval” como líder de esquadrilha a bordo do porta-aviões Intrepid. É daqui destacado para a Secção Especial do Almirantado em Scaw-Fell, on se leva a cabo, no maior segredo, a construção do Espadão, o submarino voador desenhado pelo Professor Mortimer. Aí nascerá a solidíssima amizade entre Blake e Mortimer.

Ao contrário de Mortimer, Francis Blake é a fleugma britânica em pessoa. Comparado com o amigo, parece frio e afastado, e absolutamente seguro das suas reacções. Mas tal aparente insensibilidade apenas se deve a um horror muito atavicamente britânico em manifestar publicamente os seus sentimentos. Blake é tenaz, perseverante, combativo, não se poupando a esforços até encontrar uma solução. Contrariamente a Mortimer, sempre pronto a mandar-se de cabeça para a aventura, Blake é circunspecto, ponderado e prudente. Mas quando chega o momento da acção, a sua bravura não fica a dever nada à do seu companheiro. Colecciona condecorações (“Disguinshed Service Order”, “Military Cross”, “St.George Medal”, “Victoria Cross”) e um título de baronete! Se bem que promovido a coronel, os colegas continua a tratá-lo amigavelmente por “capitão”, em homenagem a um longíquo antepassado que desbaratou os navios de Filipe-Augusto de França em 1213. Como bom bife da elíte, pratica desportos “snobs”: pólo, golfe e vela.

A descrição dos personagens que acabaste de ler foi adaptada de palavras do próprio autor. É óbvio que Jacobs quis criar estereótipos perfeitos, modelos pelas qualidades mas também pelo extracto social. Reflectem portanto uma visão elitista, a dos “bem nascidos e bem fadados”. Na banda desenhada de hoje, os heróis tendem a ser mais complexos, menos puros, mais torturados. Personagens como estes até serão sujeitos a chacota: há, aliás, uma sátira recente, chamada “As aventuras de Philip e Francis”, em que toda esta assepsia britânica sai coberta de grande gozo. Mas o facto de Blake & Mortimer continuarem a encantar novas gerações mostra que heróis exemplares e uma boa e emocionante história ainda encontram eco na nossa disposição para sonhar.

E a “Marca Amarela”? Uma história na essência simples: heróis contra vilões, o bem contra um mal misterioso e inexplicavelmente todo-poderoso. Um romance policial com inspirações no fantástico gótico tão ao gosto anglo-saxónico. Um filme negro em quadradinhos. Mas por cima disto, um pouco mais do que isto. Sem entrar em detalhes, para não te estragar a leitura e a descoberta, “A Marca Amarela” é também uma história de vingança, que contem uma reflexão, explícita, sobre o papel da ciência e do saber e outra, implícita, sobre a intolerância e o pedantismo daqueles que julgam ser donos da verdade. Estas são reflexões recorrentes em Jacobs, que escreve a sua obra durante uma Guerra Fria atormentada pelo risco do holocausto nuclear e dos novos demónios que o cogumelo de Hiroshima tinha libertado para a paranóia colectiva.

O grafismo, que atinge aqui uma sobriedade extrema, está todo ao serviço da vertente negra da história. O aspecto quase sobrenatural do “Marca Amarela”, deixando a permanente dúvida se ainda estamos num policial ou já no terror, a eficácia do logótipo, a oposição entre o claro e o escuro, a representação da noite como momento do mal, tudo concorre para dar ao enredo a sua personalidade de história fantástica.


E, sobretudo, a “Marca Amarela” é Londres. Não há obra – literária, cinematográfica ou outra – que melhor represente a minha ideia de Londres do que esta. Começando logo, com a fabulosa cena inicial na Torre de Londres, sob um céu de chumbo e uma chuva intemporal. Continuando com as imagens do “Centaur Club”, em Picadilly, ou o passeio do Dr. Vernay da página 11, ou de Limehouse Dock. Sobretudo, a humidade permanente nas lajes de cimento dos passeios que calcorreei tantas vezes e que as encontrei tal e qual as descreve Jacobs em “A Marca Amarela”.



Por último, “A Caçada”, do franco-jugoslavo Enki Bilal (desenho) e do francês Pierre Christin (texto). Enki Bilal, embora aqui só desenhe, é também argumentista e autor de um universo imaginário passado num futuro inquietante (vide, por exemplo, a “Trilogia Nikopol”), com imagens cheias de simbolismo e de um primor gráfico único. É essa inquietação que imediatamente assaltará, desde o primeiro quadrado, o leitor da “Caçada” que reconheça o estilo. Pierre Christin foi escritor, argumentista de BD e cinema, jornalista, músico de “jazz”, etc. e tal. Em banda desenhada, aparte esta colaboração com Bilal, criou com o desenhador Mezières a excelente – embora por vezes um pouco delirante – série de ficção científica “Valérian”, que inclui um dos meus livros favoritos, “A cidade das águas vivas”, aventura e acção numa Nova Iorque pós-apocalíptica, mas com uma mensagem de esperança no futuro.

Quanto a “A Caçada”, é uma obra complexa e densa no enredo, na mensagem e no desenho. A história passa-se em 1983, em pleno “Breznevismo”, perto de Krolowka, na Polónia, durante uma caçada na neve em que participam proeminentes membros dos partidos comunistas dos diversos países do então “bloco de leste”. Não te irei obviamente dizer o que se passa, para que não percas o interesse, mas o personagem fulcral é Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, influente veterano do regime soviético, com um passado que remonta aos dias da Revolução Russa.

Através do desenrolar da acção e paralelamente através das memórias que Evgueni Golozov, seu adjunto, e os restantes personagens nos vão dando de Tchevtchenko, vamos descobrindo as diversas facetas de um indivíduo complexo, de uma pessoa real tão diferente do homem imaginado que é Corto Maltese ou dos heróis ideais que são Blake & Mortimer. Vamos descobrindo como Tchevtchenko navegou a torrente histórica da Revolução Russa, lutando, manobrando, amando e sofrendo. Ficamos, no final, na dúvida sobre quem é este homem. Um revolucionário ou uma vítima da revolução? Um grande líder ou um assassino? Um figurante sujeito aos ditames de um enredo maior do que ele ou um actor principal, com autonomia para modificar o seu papel e conduzir o desenvolver da trama?

O que faz deste livro um grande livro, capaz de repousar sem vergonha na estante ao lado de um “O estrangeiro”, de um “D. Quixote” ou de um “O jogador” é esta capacidade de nos revelar a diversidade que há no Homem, através da agregação de diferentes mas comunicantes planos, de histórias dentro da história: a história pessoal de Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, a da Revolução Soviética, a do processo estalinista ou mais genericamente totalitário, a análise do poder e do seu exercício.

O desvendar, lento mas inexorável, desta múltipla geometria dá-se sobre o pano de fundo do desenho de um Enki Bilal no seu melhor, em que o realismo genérico da representação é subtilmente modificado, aqui e ali, na arquitectura do hotel ou nas memórias dolorosas, para invocar os universos imaginários de outras obras dos autores, alertando-nos e inquietando-nos. O cromatismo é fabuloso, com o simbolismo vermelho de sangue da violência sempre latente, bem como o falcão, ave de mau augúrio, sobrevoando discretamente a história, ora ave, ora massa sanguinolenta como as mãos ou as consciências dos personagens.

Enfim, já me alonguei, tirando-te precioso tempo para te lançares na leitura dos três canhanhos que aí tens. Espero que no fim fiques com vontade de mais, porque há muito mais para ler, rir e chorar no mundo da BD: as reportagens desenhadas de Joe Sacco na Palestina e na Faixa de Gaza, as memórias torturadas de um sobrevivente de Auschwitz, vistas pelo seu filho, em “Maus”, o fabuloso humor de Marcel Gotlib no “Rubrique-á-Brac”, as linhas da História enovelando-se através da descoberta de uns “Dez Mandamentos” muçulmanos, na série “O Decálogo” de Giroud, o “Grito do Povo” na comuna de Paris com Tardi, o mundo a preto e branco de Will Eisner e o seu “Spirit”, etc., etc., etc.

Um abraço amigo e boas leituras”

quarta-feira, outubro 01, 2008

Exposição fotográfica (III)

Casa em Preston, no Lancashire. Uma antiga cidade operária, hoje essencialmente dedicada à sua universidade, em que o velho tijolo contrasta com ombreiras e portadas de todas as cores. Julho de 2004. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Plasma no Visionarium de Santa Maria da Feira. Março de 2008. Canon 400D, 52mm, 1/40s, f5.6.



Bancadas desertas no Estádio Alvalade XXI. "Esforço, dedicação, devoção e glória", "só eu sei porque não fico em casa" e essas coisas... Canon 400D, 200 mm, 1/200s, f6.3.



Pôr do sol em Porto Covo. Agosto de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/100s, f5.6.



Museu da ELectricidade em Lisboa. Março de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/800s, f11.