quinta-feira, agosto 14, 2008

A minha tia Marquinhas e as dores dos leninistas

Parece não ter nada a ver, mas tem.

Quando eu era muito pequeno, tão pequeno que não me lembro já de quão pequeno seria, visitava-nos por vezes uma velha parente pela via paterna: a tia Marquinhas. De baixa estatura, a cara sulcada, já corcovando, o cabelo grisalho apanhado com aqueles pentitos que se diziam de tartaruga mas já eram de plástico, cangalhas empoleiradas à frente de dois olhinhos miúdos e vivos, trajava sempre de negro à conta de uma viuvez que eu percebia remota. De um modo secreto, e provavelmente ainda inconsciente, parecia-me soturna.

Trazia-me sempre uma prenda na mala de mão: ou uma barra de chocolate da Favorita, daquelas com papel às riscas brancas e vermelhas que se vendiam na altura em todo o lado, ou uns soquetes envoltos num embrulho de papel pardo. A minha mãe obrigava-me a agradecer qualquer um deles com igual e fingido reconhecimento. Depois, eu ficava por ali sentado e via a minha mãe, deferente, ouvindo a tia Marquinhas em conversas de circunstância, alongando-se, despedindo-se demoradamente – embora afectando pressa para regressar à sua vidinha que mesmo eu, com poucos anos, adivinhava algo vazia.

A certa altura, por razões que desconheço, a tia Marquinhas deixou de aparecer em nossa casa. Não sei se por zanga, menos saúde ou menor paciência, tinham acabado os chocolates de leite e as meiazinhas e as conversas longas à roda de um chá. Não morrera, porque ouvia ocasionais referências à sua continuada existência em jantares familiares, mas nunca a voltei a ver. Lembrei-me por vezes dela, no final da adolescência, quando comecei a ler Eça e Camilo e me apareciam personagens destes, no confessionário do padre Amaro ou preparando a ceia nalgum solar minhoto.

Ora havia um episódio picaresco envolvendo esta tia que se tornara motivo de comentário humorado nas reuniões mais alargadas de família. Dada vez, logo após o vinte e cinco de Abril, a senhora, talvez aborrecida com os desmandos característicos da fase de granel revolucionário, flectindo joelhos e cerrando punhos, três vezes alterada, terminara uma conversa com um “Sou fascista! Sou fascista! Sou fascista!”. Declaração ousada, numa época em que o termo “fascista” era utilizado para conseguir saneamentos, arruinar reputações e insultar árbitros menos benévolos para com a nossa equipa.



E foi este triplo estado de alma que me veio à memória, ao ler no jornal Público de 5 de Agosto o artigo reportando a morte de Soljenitsin. O imprudente diário tivera a funesta lembrança de ir perguntar coisas à Zita Seabra – ignoro se incógnita especialista em literatura russa – que informou que só leu Soljenitsin depois de sair do PCP e arrematou com a seguinte pérola: “A esquerda não o lia.” Dei comigo de repente a imaginar a tia Zitinha, com a mesma e engelhada carinha de grão-de-bico, com o mesmíssimo e desanimante ar de figura do passado, aos pulos, tri-gritando “Sou direitista! Sou direitista! Sou direitista!”, num orgulho bacoco e cosmético. A lata da bicha!

A Ziteca engana-se redondamente. Em minha casa, o meu pai, que simpatizava com a esquerda e sempre lá votou, tinha Soljenitsin na sua biblioteca: o “Denisovitch”, o “Gulag”, “O carvalho e o bezerro”, pelo menos e que me lembre. Mas não precisou de ler Soljenitsin para perceber (e para nos transmitir) que não se prendem e matam pessoas pelas ideias que têm, que não se nega a realidade para que ela bata certo com o que a ideologia determina, que votar de mão no ar não dá saúde a nenhum sistema, e “et caetera”, tudo noções básicas para ele mas que a camarada Zita na altura teria considerado desvios burgueses, uma vez que precisou de sair do PCP e de cinquenta anos de vida para as entender. Se por mero acaso as entendeu.

Tenho pouquíssimo saco para estes grandes democratas da vigésima quinta hora, que passaram mais de meia existência a elaborar pesadas construções argumentativas para justificar o pacto Ribentrop-Molotov, as habilidades do Beria, o esmagamento de Praga ou os privilégios da “nomenklatura”, e que agora, na hora da derrota do ideário de uma vida, viram rapidamente a casaca, mudando num ápice de ferrenhos do partido a ferozes opositores, sem passar pela casa “partida” e sem receber os dois contos. Pior, ainda se arrogam o direito de se achar modernos e liberais e coiso e tal. Não são. Até porque a antipatia ideológica que os move quando tecem comentários insultuosos à esquerda democrática é a mesmíssima que Lenine tinha para com Liebknecht ou Luxembourg, que os comandantes russos enviados à guerra civil de Espanha exibiam para com os militantes socialistas ou que Cunhal afectava para com Soares. Há coisas que não mudam assim tão facilmente.

Claro que todos têm direito a alterar a sua opinião, que mais vale tarde que nunca, que a constituição portuguesa consagra o direito à asneira e mais todo o blá-blá. Sei tudo isso. Mas também sei que deveria haver vergonha na cara, que nessa gente escasseia. Quando a ouço, tão segura e sectariamente anti-esquerdista como no passado fora comunista, só me apetece dizer como o rei Juan Carlos: “porque no te callas?”