domingo, fevereiro 24, 2008

O lugar ao lado

Eu, sentado no lugar mais à esquerda do sofá, veria televisão, encostada na parede oposta (na altura, as televisões punham-se longe porque faziam mal à vista). O meu pai chegaria do trabalho, se o turno fosse o que terminava a meio da tarde, e dir-me-ia, num tom de falsa reprovação: “Eh, pá! Esse lugar é meu!” Eu afastar-me-ia meio metro, fingindo protestar e ele sentar-se-ia, o braço apoiado no braço do sofá, segurando um livro, que desfolhava enquanto fumava um cigarro (nesse tempo, os cigarros não faziam tanto mal à saúde). E eu, no lugar ao lado, encostado a ele, riria com os desaires do gato Silvestre, ou com as americanadas do “Green Acres” ou do “Will Smart” ou com o que passasse no único canal, que de tão único nem se chamava ainda canal mas apenas televisão.

Esta é uma das mais marcadas memórias da minha infância – apenas na medida em que uma memória de infância, por natureza difusa ou esborratada, consegue ser marcada. Uma lembrança cálida, de uma felicidade secreta e banal que o tempo, esmaecendo, refinou.
Passaram-se os anos. Levantei-me do sofá, abri a porta da casa e fiz-me ao mundo. Sempre que me aconteceu voltar, por longa que fosse a ausência, encontrei, acolhedor e imaculado, no sítio onde o deixara, o lugar ao lado. Evoluiu a televisão, que ganhou cores e canais e um comando para a preguiça e um ecrã mais plano e programação mais rafeira. O tecido do sofá tornou-se cabedal, a cor viva do início dos anos setenta matizou-se num tom suave de fim de século. As prateleiras ganharam segunda camada de livros, devidamente acautelados por uma maior densidade de “bibelots”. Instalou-se ar condicionado, luxo antes reservado aos gabinetes mais importantes. Tudo mudou, menos uma coisa: o lugar ao lado, sempre à minha espera, indiferente às evoluções do gosto e da técnica e às possibilidades da carteira.

Com o decorrer do tempo, fui vendo as coisas de diferentes modos. Compreendi, por exemplo, a importância para a minha vida, para as nossas vidas, daquele meio metro quadrado de pano, molas e espuma que é o lugar ao lado. Percebi que parte do que observamos à nossa volta se explica se dividirmos a humanidade em dois grupos: os que tiveram um lugar ao lado e os que, infelizmente, não tiveram. Revoltei-me ao ver que havia quem, tendo todas as condições para dar aos seus filhos um lugar ao lado, por egoísmo ou soberba não o fizera.

Preocupa-me pois olhar para a minha beira e ver se deixei junto a mim espaço que chegue para um lugar ao lado, para os meus filhos. Parece-me às vezes que sim, mas não posso ter a certeza. O tempo dirá se fui, ao fim e ao cabo, um fracasso ou um sucesso.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

A utilidade dos saberes inúteis

De vez em quando, em casa de gente amiga, findo um bom jantar, bebida a última lágrima e percorrida a romaria entre mesa e máquina de lavar para arrumar a baixela, joga-se um “Trivial Pursuit” para animar o fim de noite. Aí, passe a imodéstia, sou encarado como um adversário temível. Quando, contra todas as expectativas, respondo que o Potomac banha Washington ou quem foi o Eduardo Mondlane, soltam-se suspiros e sopram-se, entre dentes, comparações da minha pessoa com caprinos de grande porte, enquanto, a contra-gosto, lá me passam para mão o cartão vencedor.

Nessas ocasiões, amigos que julgam vão o conhecimento terreno dizem-me que tenho a cabeça cheia de coisas inúteis. Muito me honram, mas muito se enganam. Cabeça cheia é algo que eu não tenho. Se um cartão de “Trivial” me perguntasse qual o estado da minha cabeça, talvez respondesse “oca” ou “com muito espaço para preencher”. Cheia, repito, sei que não: há tanto que vale a pena conhecer e que eu ignoro! E cada vez que encontro algum facto ou pensamento interessante e o arrumo num recanto da minha caixa craniana, vejo por lá muita prateleira vazia, a ganhar mofo, à espera de melhores dias. Até porque o saber vem empacotado em embalagens pequenas e não ocupa muito lugar, senão, como dizia um velho professor que me deu a quarta classe, os sabichões usariam sacas de batata à guisa de boinas.

Possuo, é verdade, boa memória para informações pequenas. Por isso arrasto, como uma grilheta, este “vade mecum” de nomes, datas, acontecimentos pontuais, respostas prontas. Uso-o para espantar os meus filhos, respondendo por antecipação às perguntas que embaraçam, na televisão, os concorrentes ao “Quem quer ser milionário?” ou ao “Um contra todos”. Ou então para irritar o pessoal, somando vitórias no “Trivial Pursuit”.

Não me empenhei, de modo algum, em aprender este saber miúdo. Nunca me pus a ler a enciclopédia britânica, nem o borda-d’água, nem decorei malévola e clandestinamente as respostas dos cartões. Li, no entanto, outras coisas, debrucei-me sobre alguns temas, procurei perceber alguns assuntos que achava interessantes. E nesse caminho que percorri e ainda percorro apanhei esses saberes inúteis, colados aos neurónios como as espigas do mato rasteiro que se prendem às meias e aos atacadores durante um passeio de Verão.

Este saber de feira, de respostas azuis e verdes, tem pois pouca importância para mim. É um resíduo, um resquício, uma borla, às vezes uma piada. Mas há outros saberes que são, esses sim, importantes, saberes que nos ajudam a perceber a realidade, a ajudar melhor tanto os outros como a nós próprios ou a manter vivos valores que vale a pena que não se percam. Saberes que nos trazem, mais do que saber, sabedoria, e nos apoiam na nossa errante e errática procura por um pouco de entendimento e alguma felicidade.


Gosto, por exemplo, de ler História. Ler História traz-nos identidade, entendimento e humildade. Que já são três mais-valias seguras. Identidade porque, ao lê-la, apreendemos melhor o nosso envolvimento em certas estruturas incorpóreas, como a nacionalidade, a língua, um bloco civilizacional ou uma ideologia, e ao compreendê-las melhor compreendemo-nos melhor a nós próprios e damos um sentido adicional à nossa existência. Entendimento porque existem fenómenos de hoje que têm raízes profundas no passado ou que repetem situações com que outros homens se depararam há mil atrás. Diz o provérbio oriental que a experiência é uma candeia que só ilumina o caminho andado e o provérbio nortenho que prognósticos só no fim do jogo. Por isso, nada como aprender com a experiência dos outros. Finalmente, humildade, porque quando conhecemos melhor os homens e mulheres do passado, verificamos que – contrariamente a certas ideias feitas – não somos nem um pozinho mais espertos ou sofisticados do que eles ou, pelo menos, parte deles. Não possuindo MSN nem ar condicionado, alguns poderiam dar-nos banhos de bola no que toca a coragem, sagacidade ou engenho.

Como vantagem adicional, tudo o que podemos aprender com a História vem em histórias com muita acção, intriga, pancada, sexo de todo o tipo, paixão e romance, batalhas com milhares de figurantes que nem no Senhor dos Anéis parte III, gajos de saias, mistério e até magia. Enfim, tudo o que a BBC e a Fox pretendem oferecer, sem ter que aturar os chatos da TV Cabo: aprendizagem e entretenimento, juntos e ao vivo!



Noutro plano, interessa-me também ir conhecendo a reflexão que se tem em Filosofia, num sentido lato que inclui a Ciência (dantes chamada filosofia da natureza) e a evolução que nelas tiveram as ideias, políticas, morais, científicas, etc. Por vezes os filósofos escrevem de forma difícil: lê-los requer esforço e obriga a ginástica mental, a suar um pouco, a pôr o cérebro a correr na passadeira e a encher cinquenta. Tal como no ginásio, em que a canseira tem múltiplas compensações, desde barrigas menos flácidas a arregalar o olho na boa que se esforça na máquina de pesos, penar duzentas páginas de Filosofia pode trazer vantagens várias.

Primeiro, pode ajudar-nos a aclarar e confirmar as nossas ideias ou, pelo contrário mas melhor ainda, permitir-nos perceber que andávamos redondamente enganados. Quando esta última situação ocorre, a Filosofia proporciona-nos uma ocasião ímpar para mudar de ideias, experiência clarificadora mas que muita gente, por razões que não entendo, acha tão penosa como reconhecer que anda a ser encornada. Depois, conhecendo a evolução das ideias ao longo dos tempos, verificamos que muita malta inteligente passou completamente ao lado da realidade, simplesmente por que foi incapaz de pôr de lado um conceito que não prestava. Isto alerta-nos para a necessidade de ter uma mente aberta e um espírito permanentemente crítico, que toque a sirene e acenda luzes vermelhas e verdes à mínima incoerência. Sistema que, confesso, não tenho nem estou próximo de ter.

O prémio máximo que a leitura de um livro de Filosofia nos pode trazer é chegarmos à última página e, tendo percebido o que o autor queria dizer, concluirmos que ele é um perfeito idiota, por muitos galões e referências que tenha em compêndios escolares e teses de doutoramento. Nada como alguma iconoclastia, nestes tempos que correm em que se seguem mestres de forma excessivamente piedosa.

Divirto-me ainda a ler Literatura. Há de facto tipos que brincam com as palavras e as ideias com a graça e a segurança do malabarista, jogando-as no ar e deixando-as tombar no momento certo, no sítio certo. Para além da beleza deste movimento, muitos escritores são também dos melhores historiadores e dos melhores filósofos, oferecendo-nos uma visão da História e da Filosofia vista do interior da vida, com todo o seu calor e frenesim, que completa e contrasta com a percepção distante e fria que têm os que escrevem e estudam respaldados numa visão mais cartesiana e académica.


São estes alguns dos saberes que me interessam, por me parecer que me ajudam: a entender melhor a mim e ao mundo, a agir de uma forma mais positiva para mim e para os demais, a dar sentido à minha vida e a passar um testemunho que recebi e que deve continuar por outras mãos, no dia em que eu já cá não estiver.

Dito isto, não tenho – honestamente – a pretensão de saber muito, nem o suficiente, nem mais do que os outros. E claro que nem só nos livros se encontram estes saberes, nem possui-los nos dá grande autoridade. Por vezes, pessoas com uma bagagem que pretensiosamente julgamos pequena trazem dentro da trouxa tesouros de bom senso. Quando terminei o mestrado, recordo-me de o meu avô paterno me ter perguntado em que é que eu tinha ficado com esses últimos estudos, a que eu respondi, patetamente orgulhoso, “mestre”. E ele, que era um homem simples, de não muitas letras e que tinha uma carteira profissional de uma carreira administrativa qualquer que lhe dava como categoria “mestre de segunda classe”, comentou, com uma ironia meiga: “Então, andaste estes anos todos para ficar só igual a mim?”

Não, avô, não fiquei igual a ti, porque ainda não tinha acabado de ouvir tudo o que me tinhas para dizer, e muito há, do que me disseste, que só agora, com o passar do tempo, vou percebendo por inteiro.