domingo, janeiro 27, 2008

Um ataque pelas costas

Li isto, há dias:

“Os fundamentalistas crêem que os mercados tendem para o equilíbrio e que se serve melhor o interesse comum se se permitir que os participantes ajam em interesse próprio. Isso é um equívoco óbvio, porque foi a intervenção das autoridades que evitou que os mercados financeiros entrassem em colapso, não foram os próprios mercados. No entanto, o fundamentalismo de mercado instalou-se como ideologia dominante nos anos oitenta, quando os mercados financeiros começaram a tornar-se globalizados e os Estados Unidos começaram a sofrer um défice da balança de transacções correntes.”

Quem soltou este miserável ataque às virtudes do Mercado? Um jacobino, como está em Portugal incrivelmente na moda apodar quem tenha a veleidade de duvidar da bondade da mão invisível? Não! O Jerónimo de Sousa ou qualquer outra relíquia comunista? Também não! O fantasma do Lenine em pessoa, falando às tropas em transe pela boca de uma mãe-de-santo, nalgum terreiro de candomblé da Baía? Frio, muito frio…

Nada menos que George Soros, um dos tipos que mais cacau ganhou a investir em mercados financeiros, alcandorando a sua conta bancária à confortável posição de 80ª fortuna do mundo. Do género de menino que, apostando na descida da libra, vergou o Banco de Inglaterra. Um fulano que se o virem a enfiar-se por um buraco, vão buscar uma pá, porque ele não se está a enterrar: há dinheiro lá em baixo.

E é logo um tipo destes, e não um troglodita em quem seja fácil bater, que vem dizer estas coisas que lançam dúvidas maldosas sobre a omnipresença, a omnipotência, a omnisciência e a natureza una mas trinitária do Mercado. Que chatice! Que maçada para os senhores jornalistas económicos que, com as suas gravatas de seda e as suas dificuldades com a gramática, andaram sempre a dizer o contrário. É só rir!


Já agora, o artigo completo, que vale a pena ler para conhecer uma visão interessante sobre os dias que correm, saiu não no “Avante!” mas no “Financial Times” e pode encontrar-se em http://www.georgesoros.com/?q=worst_in_60years.

terça-feira, janeiro 22, 2008

O Lago dos Cisnes

Prólogo

De convites em punho, cristalizados que nem fruta do bolo-rei pelo vento de Dezembro à beira-Tejo, fomos andando na procissão das almas, na direcção dos Santos Porteiros. Marchávamos sobre um tapete vermelho, ladeado de velas da loja do gato preto que, bruxuleando ao sabor da intempérie, ameaçavam a todo o momento pegar fogo ao meu sobretudo. Labaredas enormes! Passados finalmente os picas, vimo-nos atribuídos os lugares prái 1480 e 1482 da quarta fila, com perspectiva dimétrica sobre o palco.


Primeiro acto

Apagam-se as luzes. Sobe o pano. Outro pano, branco com traços coloridos, representando aves ao longe, em formação de picada. O técnico de luzes diverte-se a simular a parte final do “2001 – Odisseia no Espaço”, metralhando o dito trapo com fotões variados. Os altifalantes vão debitando a abertura, Opus 20. Sobe o segundo pano. Aparece um gajo de “collants” aos saltos, com uma coquilha de jogador de râguebi a tapar a melhor natureza e uns glúteos de profissional. É o príncipe Siegfried. Vai entrando mais malta pelos lados, simpaticamente nas pontas dos pés para não acordar a minha cara-metade, que já ronca no 1482. O público, desconhecedor de que a peça se divide em actos para se poder aplaudir no fim destes, bate palmas por tudo e por nada. Os artistas aproveitam para parar a cada dois passos, avançando o torso em pose de Nureyev do Beato, gerando mais palmaria.

O Siegfried faz anos e os reais paizinhos dão uma festarola. Os paizinhos também estão de “collants”, mas com um “outfit” melhorado e umas carapuças importadas directamente do Espaço 1999. De prenda pelo feliz dia, o Siegfried tem direito a uma besta para ir aos patos. A besta vai das mãos do rei para as da rainha, do príncipe, do amigalhaço do príncipe, de uma pequena que lá estava ao pé e acaba por dar a volta à Companhia Nacional de Bailado. De cada vez, dador e receptor apontam simultaneamente para o peito e para a arma, com as mãos em pose de “Ai fofa! Não me digas!” e uma carinha de “Olha que bela besta!”

“But, no free bestas in life!” Os paizinhos querem que o Siegfried aproveite o evento para escolher uma gajinha para o tal e coiso e continuar a linhagem, já que é herdeiro do trono. Apesar de se contarem em palco para cima de vinte delas – algumas com visíveis dotes de dona-de-casa – o rapaz não se entusiasma, lançando dúvidas sobre a sua seriedade. Rodopia, saltita, corre, pula e vai mas é à caça do cisne, experimentar a besta.


Segundo acto

O Siegfried assesta a arma a um bando de cisnes, de saiotes e fru-frus brancos, e prepara-se para trepanar uma meia-dúzia assim que aterrarem. Mas um dos cisnes aproxima-se e deixa-o espantado, estado que nos é representado por uns olhos esbugalhados que nem uma garoupa e várias torções rápidas do pescoço. Afinal o cisne é meio-mulher, meio-cisne. Perante a aberração, o príncipe, que acabara de rejeitar vinte boas de borla há dez minutos atrás, revela o seu lado “kinky” e apaixona-se, extravasando o seu sentimento com pulos que nem um cabrito-montês.

A mutante informa Siegfried que se chama Odete e que também é princesa de profissão. Calha bem. Ficou naquele triste estado por causa de um feiticeiro mau, com nome de comandante de uma coluna de “panzers”: Von Rothbart. Os pais dela choraram tanto, coitadinhos, que as suas lágrimas formaram o Lago dos Cisnes, só ultrapassado pelo Mar de Alvalade. Ouvido isto, o Siegfried, que é tosco e acredita no que as mulheres contam, apaixona-se ainda mais.

Entretanto aparece em palco, com fanfarra e fumarada, o dito Rothbart. Traja “collant” e jaquetão preto e capacete integral ou coisa parecida, numa inspiração Darth Vader. Siegfried faz-lhe um daqueles números de Marvila, só que na ponta dos pés: “anda cá que eu te desfaço”, “agarrem-me que eu dou cabo dele” e outras do género. Mas Odete agarra-o mesmo. Se Rothbart morrer, o feitiço nunca mais será quebrado e ainda faltam dois actos.


Intervalo

Romaria ao urinol. Pinguins servem cafezinhos de saco. Tenho dezassete chamadas não atendidas e seis mensagens de voz de uma mesma amiga, desesperada ao partir um dente com uma trinca num bacalhau mal demolhado, azar só explicável por outra maldição do Von Rothbart. Regresso à quarta fila, enquanto apago da memória (não da minha) aquela orgia de esse-eme-esses.


Terceiro Acto

O príncipe regressa ao baile, que ainda verga ao som do DJ Pyotr T. O feiticeiro também lá vai, disfarçado, mas eu topei-o logo. Leva a sua filha Odília, que ele transformou para ser igualzinha à Odete, com nome de costureira e tudo, só que vestida de preto em vez de branco. O Siegfried, que além de estúpido deve ser daltónico, ou então que está com a cabeça à roda de tanto voltear, baralha-se e anuncia ao “party” que está apanhado pela Odília. Quando se apercebe do erro, ao ver a Odete lixada a deslizar em “pas de deux” para trás de um cenário, já é tarde demais.


Quarto Acto

Siegfried regressa à floresta enquanto prepara um discurso do género “percebeste mal, era só uma amiga.” Encontra a Odete e dá-lhe a tanga. Dançam durante um quarto de hora. Levo uma cotovelada cúmplice da minha mais-que-tudo a avisar que agora sou eu que estou a passar pelas brasas.

Na austera versão original russa, os dois amantes afogavam-se no lago dos cisnes, num “sepuku” aquático, convencidos da invencibilidade da maldição do bruxo. Nesta mais latina adaptação, o amor vence e o Von Rothbart cai nos fundos dos infernos, aproveitando um alçapão ao fundo do palco de onde saem umas luzes avermelhadas e os restos da máquina de fumos. Os nossos heróis, agora livres, já podem receber a ovação final do público.


Epílogo.

O momento mais cultural da noite. Ceia volante oferecida pela organização. Ultrapasso o Siegfried em destreza e elasticidade, gerindo prato, copo de vinho e dois talheres, só com duas mãos e em pé. Isto sim, é “ballet”!

sábado, janeiro 19, 2008

O socrático sucesso


“Se um homem for feito prisioneiro de guerra e não houver quem sustente sua esposa, ela deverá ir para outra casa, e a mulher estará isenta de toda e qualquer culpa.”
Código de Hammurabi, 1700 A.C.


Descia eu a Fontes Pereira de Melo na quinta passada. Uma cacimba espessa, anunciando chuva, convidava a um passo apressado. Em sentido contrário, uma senhora de idade, nitidamente nos setenta, subia a calçada. Ao cruzarmo-nos, abordou-me, numa voz sumida: “Desculpe, o senhor não se importava…” Estava bem vestida e arranjada, e por isso naquele segundo esperei um “…de me dizer onde fica a rua tal” ou um “… de me dizer onde se apanha o autocarro xis” ou meramente que me perguntasse as horas.

Mas não. Baixando os olhos, continuou, num tom que quase não se ouvia: “… preciso de ir à farmácia e não tenho dinheiro.” Quando nos voltámos a fitar, enquanto eu lhe dava uma moeda para a mão, reparei na sua expressão mista de vergonha e alívio. Murmurou um agradecimento e eu segui, ou melhor, escapuli-me, desgostoso. Tudo ocorreu em segundos, de forma discreta. Os fatos e gravata e os “tailleurs” que nos cruzavam nem deram por nada, no seu afã de eficiência satisfeita.

E eu, prosseguindo o meu caminho, perguntei a mim mesmo: “Que merda é que nós andamos a fazer?” Já não era a primeira, nem a segunda vez que encontrava esta mendicidade envergonhada, de mulheres e homens sós no fim de uma vida honesta, a quem a doença e o abandono tornaram os meses compridos demais. Onde andamos nós a falhar tão redondamente enquanto sociedade, para que esta mulher, esta avó de todos nós, se visse reduzida a palmilhar ruas à chuva, pedindo em voz baixa, empurrada pela necessidade, toldada pela vergonha do que pensa ser seu fracasso, quando o fracasso é nosso, total e miseravelmente nosso?

A grandeza de uma sociedade mede-se pela justiça com que trata os seus mais fracos. Deveríamos sentir tanto constrangimento em ver um velho a pedir como o que a maioria de nós desenvolveu em relação à mendicidade infantil. Há trinta a quarenta anos atrás, ainda me recordo de muita gente em pose de boa gente achar um facto da vida, vagamente lamentável mas certamente natural, que as crianças de famílias pobres pedissem na rua. Algumas até lhes chamavam umas malandras. Hoje em dia, se alguém assim pensar provavelmente terá vergonha na cara suficiente para o manter para si. E esta evolução do pensamento colectivo acabou por servir para, pelo menos, convencer a sociedade de que é sua obrigação gastar recursos a proteger as crianças.

Falta completar – ou reencontrar – um percurso mental semelhante para os velhos. Que deve começar por aceitar a velhice como um facto da vida (no fundo, todos esperamos lá chegar) e não dar uma carga negativa ao vocábulo. Esqueçam terceiras idades, idosos, faixas etárias avançadas ou populações seniores. Sénior é a equipa do Sporting e não anda a jogar um cartucho. Velhos! Com todo o respeito e veneração que a palavra nos merece.

Tudo isto se passou no dia em que um banco privado decidiu atribuir ao seu recém-despachado presidente do conselho de administração, quadragenário, uma pensão vitalícia, módica, próxima dos cem salários mínimos mensais. Provavelmente para que não o tivéssemos que ver, na Baixa, de fato cinzento e mão esticada, a implorar a caridade alheia, para um café ou um mata-ratos. O que seria incómodo.

Tal facto gerou comentário e um certo mal-estar até nos editorialistas mais acerrimamente pretenso-liberais. Espanta-me que não tenha causado maior revolta no grande público. Provavelmente as pessoas pensam que só se devem indignar com os desplantes públicos e não com os desplantes privados. Não é assim. Quer por razões éticas, que o Hammurabi, citado em epígrafe, já tinha percebido há quatro mil anos, quer por razões práticas, que só agora os teóricos da liberal economia começam a vislumbrar, tão notórios diferenciais de riqueza não dão saúde a ninguém. A cabeça da Maria Antonieta que o diga.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Os cumes

Texto já antigo, em antecipação da temporada de "ski" que aí vem.


A cadeira subia etérea
A sua estrada unifilar

Daquela amurada aérea
Os cumes a alvejar
Ao longe chamavam
Como sereias esvoaçando
Em torno de Ulisses regressando

O cabo em súbita paragem
Deixou-me suspenso
Da beleza da paisagem
Que soberba a Montanha
Como um Deserto ou o Espaço
Ou o longilíneo infinito dos Rios

Curioso é que tão absolutos vazios
Nos encham a alma de forma tamanha

sexta-feira, janeiro 04, 2008

A tentação esotérica

Cresci e formei-me num meio e numa época em que o racionalismo imperava.

Frequentei, desde pequeno, o Liceu Francês de Lisboa – a minha escola – uma escola muito laica, que nos ensinava que, da Revolução Francesa, interessavam mais as ideias que trouxe do que alguns excessos guilhotinescos, que o século XVIII fora das luzes da razão face à obscuridade da crendice e onde o sistema canalizava os melhores alunos para a área científica, onde um espírito cartesiano era condição essencial de sobrevivência.

Ao fim do dia, saindo os portões do liceu, deparava-me com uma sociedade portuguesa a viver um período “pós-vinte e cinco de Abril” em que a religião, basicamente a religião católica, aparecia associada ao obscurantismo salazarista. As estruturas religiosas existentes em Portugal andaram por isso uns tempos de bola baixa e o país aproveitou a deixa para mudar um pouco a sua mentalidade, especialmente na classe média dos meios urbanos. Debatia-se muita política, e cada um tentava levar o outro a mudar de ideias pela razão dos seus argumentos. Neste processo de mudança, a tecnologia foi muito valorizada – infelizmente mais do que o saber, mas isso é outra história.

Acresce que eu, em criança, lia muito sobre astronomia, física, evolução do homem e assuntos similares e, para mim, Deus encaixava mal naquilo tudo. Andei na catequese entre os sete e os dez anos e tudo o que me lá contavam parecia ilógico, afastado da realidade.

Na verdade, neste mundo de argumentos racionais, de maravilhamento com a ciência e as suas conquistas, de centragem na liberdade individual recém-reconquistada, havia pouco espaço para deuses e divindades. Acreditar em Deus era coisa de avós velhinhas e gente do campo. Se eu soubesse de um colega de escola que fosse crente, logo trataria de lhe fazer notar, com toda a arrogância, quão estúpido ele era ou desencaminhado andava.

Aquando do meu ingresso na universidade, quase todos os meus amigos, que tinham percorrido um percurso similar, eram como eu: ateus, convictos das suas razões, quando não anti-religiosos e anti-clericais.

Vinte e cinco anos passaram e algo mudou. Desse meu grupo de indefectíveis descrentes, mais de metade encetou um caminho a que eles chamam “espiritual”. Normalmente, não pelo regresso à nossa matriz cultural católica mas seguindo por uma via mais introspectiva, de procura pela diferenciação e de algum esoterismo. Um deles anunciou recentemente que vai passar quatro anos isolado do mundo num retiro budista, causando um choque de proporções cósmicas no pequeno universo dos seus amigos, que teve pelo menos a virtude de animar alguns jantares de natal.

Entretanto, eu fiquei na mesma. Talvez um pouco menos radical, porque leio os Evangelhos, o Corão ou ensinamentos budistas com prazer e consigo lá encontrar, por vezes, interessante filosofia, mas continuo ateu e racionalista. E assim sendo, em que acho esses meus amigos diferentes de mim?

Comecemos pelo ateísmo. Eu, como ateu, acho que sou e um dia vou deixar de ser. Não vai haver mais nada, nem consciências universais, nem almas para o paraíso, nem reencarnações em fauna exótica. Nada. Zero. Só umas moléculas por aí. E não é nenhum drama. A vida não deixa de ser coisa boa e continua a fazer todo o sentido. Pelo contrário: cada dia é uma dádiva, só que sem dador, e do que faço em cada dia posso e devo retirar gozo mas também utilidade, contribuindo para a melhoria ou maior perenidade de coisas maiores do que a minha modesta pessoa: o mundo onde vivo, a espécie a que pertenço, a cultura que partilho, a língua que falo, os valores que julgo importantes. Abster-me-ei de incluir nesta lista o glorioso Sporting, porque esse é imortal.

Não consigo deixar de pensar que os crentes não conseguem encarar bem de frente esta fria realidade. De facto, deve ser reconfortante pensar que algo continua depois. O que explica, aliás, o grande número de conversões à vigésima quinta hora, no leito de morte. O medo da morte é algo natural, provavelmente resultante, até, do processo de evolução por selecção natural: calculo que os bicharocos que ficavam, destemidos, a ver os tiranossauros a aproximar-se, deixaram menos descendência do que os cobardolas que se puseram a milhas em grande velocidade. Mas o facto do medo da morte ser natural não impede que o tentemos perceber e dominar, como fazemos ao longo da nossa vida com tantos outros receios.

A recusa da morte física poderia ser emblemática de um desconforto que esses meus amigos sentem com a realidade existente – tantas vezes difícil – e que os leva a deduzir que existe outra realidade, paralela à que é evidente, mas todavia mais perfeita e mais essencial. Essa realidade secreta oscila, consoante os casos, entre regras de funcionamento subtis mas mais poderosas (por exemplo, o equilíbrio “karmico”), que consubstanciam um universo afinal perfeito (a dor, o sofrimento, passam a ter uma explicação, ver mesmo uma razão de ser), até sociedades secretas e herméticas, que controlam a nossa existência, manietando-nos em nome de um bem ou de um mal superiores (neste caso, aquilo que para nós não faz sentido na sociedade aparente em que vivemos é explicado ou, melhor, legitimado pelos superiores interesses dos que secretamente nos controlam).




Para mim, o mundo real é o mundo real. Tem evoluído um pouco para melhor, com alguns altos e baixos. No entanto, paredes ou fronteiras meias com gente feliz, continuam a existir a fome, a guerra, a doença, a iniquidade. É um facto triste, mas tenho que reconhecer que é assim que as coisas funcionam. Consigo encontrar explicação para muitos dos desmandos políticos e sociais que observo no dia-a-dia na dinâmica de poder que se estabelece entre indivíduos e grupos, nas virtudes e sobretudo nos defeitos da humanidade e num ou noutro acaso. Não preciso de dados ocultos ou regras especiais para explicar o que vejo. Aceito, com pesar, que desgraças ocorram, por muito bem que nos organizemos. Não estamos a salvo de que nos morra um filho e que soframos durante toda a vida um sentimento de revolta e injustiça. A vida não é apenas finita, é também arriscada, mas é um risco que vale a pena correr.

Esta diferenciação entre realidade “aparente” e realidade “escondida” levanta um problema prático a esses meus amigos. A realidade “aparente” quadra bem com a realidade aparente, mas a realidade “escondida” não. A realidade “aparente” pode ser descrita por modelos ou medida por aparelhos. A ciência, o saber, são fontes de autoridade poderosas que validam a realidade “aparente”. Perante este problema, observo que são propostos dois tipos de solução: nuns casos, pretendem que a realidade “aparente” é forjada, em mais uma manipulação em proveito da tal sociedade hermética que nos controla; noutros, afirmam que a realidade “aparente” é incompleta, bem como as suas fontes de legitimação, sendo a realidade “escondida” mais global e atestada pela autoridade de certas personagens (mais sabedoras, mais clarividentes, mais experientes, mais perfeitas, mais felizes, em resumo, superiores).

Este é outro aspecto em que me sinto muito diferente destes meus amigos. A noção de que existiriam pessoas com uma autoridade especial que lhes advém de uma superioridade estrutural é uma noção que me horripila, para falar com franqueza. Pela simples razão que uma superioridade estrutural é incontestável. Quem o ataca só pode estar, por definição, errado e pode, no limite, ser calado. Esse limite tende, infelizmente, a ser atingido muitas vezes, como a História demonstra. Uma superioridade moral ou intelectual com um carácter estrutural, permanente, só pode gerar um sistema de ideias que seja fechado, no sentido que Popper deu à expressão, inacessível do exterior.

Na minha opinião, nenhum homem tem uma autoridade intelectual ou moral absoluta sobre outro homem, uma autoridade que não possa em dado momento ser contestada. Claro que existem pessoas mais sábias, mais ponderadas, mais inteligentes do que eu. Claro que faz todo o sentido ouvi-las com atenção e absorver o que têm para nos ensinar. Mas nada impede que eu possa ter razão, num determinado momento, num assunto de que pouco sei, contra o melhor dos especialistas. São as ideias que se confrontam, não as pessoas.

Vou mesmo um pouco mais longe, neste aspecto. Penso que o Homem só o é com as suas virtudes e as suas fraquezas. Cada um de nós pode alterar o seu comportamento, aprender com os outros, aproveitar as suas qualidades e mitigar os seus vícios. Mas será mais feliz uma sociedade em que saibamos controlar os nossos defeitos e perdoar os dos outros do que outra constituída por seres perfeitos, em constante beatitude.

Sobre isto, vem-me agora à memória um “videoclip” que estava a passar na TV do restaurante onde almocei hoje: “Jealous Guy”, do John Lennon. Se se recordarem, Lennon justifica o seu comportamento perante a amada invocando um defeito muito comezinho: “I’m just a jealous guy”. Daqui nasce a poesia: o que é sublime (o amor, o perdão) pode ser originado e justificado por um vício tão humano quanto o ciúme. Não teria um vinte avos da piada se fosse um guru qualquer a cantar “I did not hurt you and I did not make you cry. I’m just a perfect guy”.

Dito isto, amigos como dantes. E ao que vai quatro anos para o retiro: que encontres o que procuras e, se não, que voltes depressa.