domingo, junho 24, 2007

A boa e a má tristezas

Tal como o colestrol e os raios ultra-violetas, também existe uma tristeza boa, que em doses apropriadas nos faz bem, e uma tristeza má, que quanto menos melhor.

A questão que se traz, suscitam-na recentes intervenções em blogues da vizinhança sobre o tema da felicidade. Nestes, enfrentavam-se no fundo duas visões da felicidade: uma correspondente a uma vivência globalmente positiva, outra a um estado ideal ao qual se acede pela eliminação de elementos negativos. Nesta última óptica, a tristeza, a dor moral, seriam sempre mais nefastas que a sua ausência. Penso convencidamente que tal nem sempre acontece.

Note-se que não haverá lugar aqui a nenhuma apologia romântica da tristeza. É melhor ser alegre do que ser triste, dizia o Vinicius de Moraes, provavelmente homenageando La Palisse de tão óbvio que soa. E claro que existem muitas tristezas duríssimas, que tornam muito difícil ou impossível atingir a felicidade, como a morte de um filho, ferida que nunca fecha e acontecimento que marca uma vida indelevelmente com um ferrete em brasa de infelicidade. Mas o que será falado serão outras tristezas, que nos transtornam os dias mas não a existência e sem as quais dificilmente nos poderíamos habilitar a estar inscritos no clube humano.

Certa vez, eu e minha mulher comentávamos o desejo que alguém exprimira de ser cremado e de ter as suas cinzas espalhadas em lugar incerto e ela disse algo que me ficou, algo como “quando os meus pais forem, quero ter um lugar onde possa de vez em quando ir chorar por eles”. Não há nada de estruturalmente negativo nesta tristeza. Obviamente que não queremos que os nossos pais se vão. Mas um dia, pela ordem da vida, tal acontece e vamo-nos sentir muito tristes, depois um pouco menos, mas sempre algo tristes. Porque o nosso mundo ficou mais pobre e pequeno, porque intuímos a nossa própria hora, porque esta é a nossa natureza, magnificamente humana. A partir daí, quando nos lembrarmos, sentiremos tristeza. Poderemos, consoante o nosso modo de ser, vivê-la no nosso íntimo ou expressar uma lágrima. Mas sentiremos, e ao sentir estaremos revitalizando a nossa memória dessa pessoa, comunicando de algum modo com ela, insuflando vida em algo que outros julgam morto.

A alternativa, terrível, é o oblívio. Certamente, esquecer seria mais cómodo. E segundo algumas perspectivas a meu ver erradas, trar-nos-ia felicidade por não nos trazer infelicidade. Recordo a talhe de foice uma leitura de Milan Kundera que descrevia uma viúva que, aos poucos, naturalmente, ia perdendo a lembrança de traço após traço do marido e que no seu esforço para recordar acabava por confundir tudo, até perder toda a memória dele. E, nesse dia, ele de facto morrera de vez. A memória de um ente querido traz continuidade, lança uma ponte e também uma homenagem. Por isto mesmo, quando há mais de cinquenta mil anos os nossos primos remotos Neandertais começaram a praticar cerimónias fúnebres, saímos da era da macacada para passar a ser gente. A dignidade na morte tornara-se um espelho da dignidade da vida humana.

Dito isto, essa tristeza não faz de nós infelizes, nem sequer, de um certo modo, menos felizes. Quando alguém próximo morre na sua hora, depois de uma longa vida, a tristeza não nos impedirá de olhar para trás e dizer: “Teve uma vida boa. Amou e foi amado. Divertiu-se. Fez isto e aquilo. Gozou filhos e netos. Marcou-os por esta ou aquela suas características. Deixou boas lembranças. Valeu a pena.” E o nosso sentimento triste será ponderado por um balanço positivo, e coexistirá pacífico na nossa própria felicidade, como uma ruga de maturidade que não desfeia um rosto bonito. Infelicidade, na minha perspectiva, seria não pensar mais no assunto.

A frustração de um estudante que sofreu um desaire ou de um atleta que chora na derrota pode ser catalizadora de uma reacção de brio que os motive para um sucesso ainda maior logo de seguida. A melancolia que nos toca ao vermos um filme dramático ou ouvirmos uma canção de sentimento faz parte de uma reflexão intuitiva sobre a nossa condição humana e tem associada uma perspectiva solidária, que muitas coisas boas tem trazido à humanidade. As pequenas contrariedades que puxam a lágrima às crianças também as formam, tornando-as mais capazes de interagir com o mundo à sua volta. São um pequeno investimento de tristeza que pode dar um alegre retorno ao longo da vida. Nenhuma destas formas de tristeza se incompatibiliza com a essência da felicidade. São meras pedras no caminho, em que tropeçamos para logo levantar, sacudir a poeira e seguir, se calhar com maior noção do equilíbrio.

Quando assistimos a desgraças inomináveis no telejornal, será bom sinal que fiquemos tristes. Relativizar certas coisas só por egoísmo de sofá. Recordarei para sempre uma cena transmitida durante o massacre da escola de Beslan, em que um pai segurava em pranto o corpo morto do filho, aí de uns dez anos, e a mãe, gritando, tentava esticar os braços para tocar na criança mas, quando estava quase, estes retraíam-se como se dotados de vida própria, como se não quisessem aceitar o horror. Nessa noite chorei convulsivamente de raiva, como se aquele fosse um filho meu – de certo modo era-o – e só partilhando uma migalha daquela dor infinita percebi o que realmente ocorrera naquela escola, muito para além das causas políticas, religiosas ou étnicas. Sempre que relembro essa imagem fico momentaneamente infeliz, mas mais infeliz seria no fundo se estas coisas me passassem alegremente ao lado.

Agora, andam para aí ao que parece uns seres excepcionais que se reputam os mais felizes da galáxia e arredores, por conseguirem afastar da brilhante carola qualquer pensamento negativo. Os seus electroencefalogramas revelariam apenas boas ondas, lembranças florais, memórias entusiásticas, cores lindas e outros alegres pensamentos que tais. Em suma, uma ganda tripe.

Confesso que estes e outros super-homens – à excepção dos da Marvel – sempre me causaram alguma desconfiança. Primeiro, porque ninguém teve a amabilidade e o bom senso de me convidar para tão excelso agrupamento. Se se tivessem lembrado, talvez eu condescendesse. E tal inábil atitude não pode deixar de me causar suspeita, até porque ainda não conheci ninguém que me fizesse sentir da terceira divisão. Porque é que haviam agora de ser esses senhores gajos? Por outro lado, a História demonstra em títulos tristes escritos a tinta de sangue que as manias de superioridade deram sempre raia, com dor e ranger de dentes em doses industriais. No século que passou, foram umas dezenas de milhões de mortos para o “übermensch” nazi e outras tantas para o “homem novo” soviético.

Com a excepção das senhoras maritalmente mal servidas, porque raio é que haveríamos de querer um homem novo se ainda não esgotámos tudo o que de bom tem para dar o homem velho e se calhar nem vamos esgotar? Como “homem velho”, podemos ser criativos, construtivos, progressivos e até felizes. Com os seus defeitos e maleitas, com todos os riscos inerentes a viver a vida, o “homem velho”, o “homo sapiens sapiens”, o verdadeiro, o da Bayer, dá-nos um excelente enquadramento para realizar grandes obras e levar uma vida gratificante, que chegue para nós e sobre para os outros.

E isso pode acontecer sendo nós simplesmente quem somos. Gente com alegrias, com tristezas, que chora, que ri, que às vezes tem dores de dentes. Gente que olha para si e se vê construída de momentos bons e outros tristes, mas que consegue em cada instante conceber um balanço e que eventualmente ousa declarar-se feliz. Gente que seja de facto feliz, mesmo que a espaços não o esteja, mesmo que por vezes sofra com um dia mau, com um revés, com um pensamento de solidariedade para com os que realmente vivem na infelicidade porque têm fome ou porque viram os seus pais mortos por soldados ou um filho abatido por um condutor que decidiu ser sua aquela passadeira.

Uma mente só com pensamentos alegres? Porra! Que coisa mais triste!

sábado, junho 16, 2007

O cão nauseabundo

(Private joke)


Não sei qual dia fora
De um mês que já passou
Em que algures na Beloura
Eram cinco a jogar Tarot.
Por sobre a toalha vermelha
Ferviam cortes e puxadas
E acusações de ser aselha
Por mor de um seis de espadas.

Vai um dado momento,
Tudo de soslaio a mirar:
Um jogador menos atento
Acabara de se largar.
Fora discreto o autor
No som, mas não no resto:
Compensava pelo odor
O silêncio de tal gesto.

Ora havia na casa um cão
Que não devia nada à limpeza:
Estava ele por trás da razão
Do mal-estar naquela mesa.
Olhando os jogadores arfava,
Com um arzinho satisfeito,
E o pessoal enquanto jogava
Ia trocando um olhar suspeito.

Até que o dono da casa, agoniado,
Explicou a todos a situação.
Não fora pois nenhum convidado:
Quem se borrara fora o cão.
E arrumando cartas com alarde
Passou-as ao vizinho já cortadas:
Preferiu não arriscar uma “garde”
Para ir escancarar as portadas.

domingo, junho 10, 2007

Prazeres exóticos

Hoje, no escaparate de livros em destaque da FNAC, lado a lado, duas propostas: “Casei com um Masai” e “O meu casamento com um Bérbere”. Como agora a actividade editorial anda muito de modas, presumo que procurarão títulos para esta nova etnografia por via uterina. Aqui vão algumas sugestões:

- o meu matrimónio com um índio quichua;
- bodas com um cingalês;
- desposei um esquimó (que me emprestou ao vizinho do iglu ao lado);
- na cama com um congolês (“extended stick mix”);
- cobóiada num albergue com uma data de espanhóis;
- sexo agitado com um alentejano;
- noite de núpcias não consumada com um benfiquista.

O pessoal não terá mais nada para ler?

quarta-feira, junho 06, 2007

Os gatos

Num momento de fraqueza, cedi às loas de uma amiga militante da causa felina, que conseguiu tornear o meu bom senso fazendo-me ceder à pretensão das crianças em ter um gato. Foi assim que um dia cheguei a casa e me deparei com a família de rabo para o ar, a tentar tirar de debaixo do sofá uns assustados quinze centímetros de pêlo cinza e pernitas magricelas, já nomeados Silvestre à minha revelia, em homenagem ao incompetente dos desenhos animados que nunca conseguia abocanhar o enervante canário.

Durante os dias seguintes, testemunhei uma sucessão de pequenas alegrias – o Silvestre já comeu, já adormeceu, já arreou o calhau, olha entrou para dentro de um saco – alternadas com grandes dramas – o Silvestre engasgou-se ou, pior, o Silvestre desapareceu. Os desaparecimentos do Silvestre originavam grossas angústias e verdadeiras batidas pela casa, que podiam demorar horas, com lanternas e paus e que terminavam por norma quando o Silvestre de espontânea vontade se materializava debaixo dos nossos olhos, bocejando indiferente, acabadinho de chegar da quinta dimensão.

Descobri por essas alturas a monumental indústria que gravita à volta dos gatos. Um verdadeiro “cluster” da nossa economia, para usar a expressão do Michael Porter. Entrei então em corredores do supermercado cuja existência nem suspeitava, onde se amontoavam variedades impensáveis de comida para gato, em lata ou em sacas, pequenas, médias ou grandes, com diferentes cores e composições consoante as idades, para gatos gordos e para gatos débeis, de pelagem rala ou farfalhuda, activos ou mais dorminhocos, tónicas ou dietéticas, tudo a preço de caviar “beluga”. Rapidamente o Silvestre passou a ter despesas de veterinário e um boletim de saúde como não o têm os velhotes do interior, plano de vacinas e desparasitagens. Fiquei a saber que se o bichano viesse a andar enervado, existem psicólogos especializados em dar conforto mental à gataria, por valores menos que módicos. A antiga caixa de serradura das minhas memórias de infância fora substituída por uma autêntica estação de compostagem, com uma areia sintética cheia de aromas e agregantes, dispendiosíssima, que produzia uns calhaus muito práticos mas que provocavam o rápido desaparecimento da dita areia – e a consequente e irritante necessidade de comprar mais! A esta renda havia que somar os brinquedos, o tronco de afiar unhas, as cestas para dormir mais os cobertores, o cesto para deslocações e os “bibelots” que se iam partindo.

Perante a parafernália e a despesa, a minha mãe, que em criança sempre tivera gatos de quintal que comiam espinhas e bebiam água das poças, comentava com bastante filosofia que até para se ser gato é preciso ter sorte.




Passados uns tempos, o “lobby” da bichanada voltou a atacar e conseguiu-me convencer de que se um gato incomodava muita gente, dois gatos incomodariam muito menos. O argumentário girava à volta de que assim se fariam companhia um ou outro, andariam menos nervosos, encheriam menos o saco, etc. Deste modo mentiroso chegou o Tommy a nossa casa.

O Silvestre era um bicho com algum “pedigree”, arraçado de Bosque da Noruega, com uma belíssima pelagem cinzenta, luzidia e suave como uma gola de marta. O Tommy, malhado que nem uma charolesa, de pêlo áspero, assumidamente rafeiro e com a pata muito leve. Rapidamente pôs o mais velho na ordem. Passado poucas semanas, já comia primeiro da malga, numa lição de liderança. Pusemos uma segunda tigela para o Silvestre, e ainda assim este esperava que o outro terminasse, numa lição de submissão. Estranho mundo dos gatos que tão bem imita o dos homens!

Mudou a minha vida e mudou a minha casa. Nunca sabia quando um qualquer gesto do quotidiano, uma luz que se acendia, o sentar num sofá, um passo inadvertido, iriam desencadear um tropel pelo corredor fora, um eriçar de pêlo bufante ou um mero olhar redondo de desprezo. No desprezo, aliás, eram exímios. Tinham uma maneira de olhar de soslaio, erguendo o pescoço ao de leve, de bocejar num vago aborrecimento, de virar costas e seguir caminho sem passar cartão, que só poucas mulheres – e nenhum homem. Quando soube que a esperança de vida destes animais podia exceder os catorze anos, percebi o logro em que caíra: pela ordem natural das coisas, os meus filhos sairiam de casa antes dos gatos. Desesperei com a ideia dos dois em frente à têvê, cada um com o seu felino ao colo, esperando em vão um telefonema dos ingratos.

Mas, pouco a pouco, os gatos fizeram ninho nas nossas vidas. Impuseram os seus hábitos e a sua linguagem: um olhar para a janela, põe-me aqui um banco; um mio para a maçaneta, abre-me a porta; um rebolar aos pés, dá-me festas. Estabeleceram preferências: por pessoas, por lugares, por momentos. Havia uma hora para a Sofia, outra para cada miúdo e outra para mim (infelizmente a meio da noite). Numa palavra, tornaram-se da família, com aquele jeito insinuante e lunar que me lembra o poema do Alexandre O’Neill:

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?


Sei que com os meus gatos aprendi a resposta, e não é “dono” de certeza.