domingo, março 25, 2007

Ratos Noruegueses

Este post é só para amantes de new wave, interessados em sê-lo ou meros curiosos…

Feliz efeméride: passam agora trinta anos sobre a vinda a público de uma das maiores realizações da mente humana, a par do teorema de Pitágoras, da Primavera de Boticelli ou da nona de Beethoven: o álbum “Rattus Norvegicus”, dos “The Stranglers”. Ok, tá bem…Concedo que esteja a exagerar um bocadinho, mas só um bocadinho.

Voltemos a 1976, ao meu despertar para a música e para outras coisas. Era um tempo de fim de ciclo para as grandes bandas de rock sinfónico que dominaram a primeira metade dos anos setenta e que eu ouvira nos pratos dos irmãos mais velhos do pessoal: Genesis e Pink Floyd no seu máximo esplendor criativo, Yes, Emerson, Lake & Palmer, Triumvirat, King Crimson. No balanço, ficaram registadas em vinil algumas das maiores realizações da mente humana, de que “Selling England by the Pound” é apenas um exemplo. Entretanto, nos bas-fonds londrinos, surge o punk como contraponto dialéctico e vai de moda, com cabelos pintados de azul, piercings de alfinete-de-ama, calças a sufocar a tomateira e blusões de cabedal acorrentados. Os concertos passam do Estádio de Wembley para clubes manhosos (não obrigatoriamente uma referência ao SLB) e a atitude muda de uma beatitude alucinada e bem-querente para uma certa agressividade, que vai desde a dança pogo, em carga de ombro sobre o adversário, até francas bastonadas com tacos de beisebol nas gengivas como método de arbitragem em caso de diferendo.

Em 1977, a javardeira ganhou tal popularidade que as editoras perceberam que estava na altura de passar tal coisa das demos para o mainstream. Nesse ano, saem os primeiros dos Sex Pistols, dos Television, dos Damned, dos Clash, dos Talking Heads, dos Eddie & the Hot Rods, dos Suicide, dos Buzzcocks e de Richard Hell & The Voidoids. Ainda em 1976 fora publicado o primeiro dos Ramones. Esta “Class of 77” toca músicas curtas, com muita guitarra, muito pedal, vozes pouco afinadas e letras curtas e grossas. Por isso vão morrer cedo. As excepções são os Talking Heads que entram na onda com um disco que já é new wave – logo dois a três anos à frente do seu tempo como é normal em génios que virão a gravar “Fear of Music” e “Remain in Light” (estes também, duas das maiores realizações da mente humana) – e os Clash, que vão evoluir em três prestações até “London Calling” (por coincidência, outra das maiores realizações da mente humana).

Nesse mesmo setenta e sete, aproveitando a boleia do frenesim editor, um bioquímico, um “karateka”, um vendedor de gelados e um organista, numa improvável combinação, juntam-se para gravar Rattus Norvegicus. Tomando a nuvem por Juno, o público classifica inicialmente o grupo como punk. Puro engano.


Começa logo na capa. No tempo dos LPs, a capa tinha espaço para quatrocentos centímetros quadrados de mensagem, quatro vezes mais que num CD. As capas dos álbuns punk desperdiçaram esse espaço, mostrando a banda ao natural, com o ar bacoco e os cabelos espigados. Na capa de Rattus Norvegicus, não há naturalidade. Há pose, para que algo nos seja dito. As pessoas, os objectos, as cores, as sombras, tudo nos avisa que algo de errado se vai passar. Em primeiro plano a ombreira de uma porta, com Dave Greenfield e Jean-Jacques Burnel pálidos sob uma luz baça, como demoníacos guardiães à entrada de um mundo diferente, ladeados por preocupantes troféus de caça cristalizados na sua maior ferocidade, de presas em riste. Por trás, numa segunda câmara, inundada de um halo vermelho, o diabrete Jet Black, tendo por trás uma boneca de loiça despida. Ou vemos mesmo uma criança? Ao lado, um relógio de pêndulo, marcador do tempo, que acarreta a morte. Tudo reforça uma semiótica do inquietante. Depois, numa terceira sala, numa penumbra esverdeada, mefistofélico, Hugh Cornwell. Ao fundo, noutra porta, contra a luz, uma silhueta desconhecida. Quem será? O Mestre das Trevas? Ou um mero diabo para nos guiar na descida aos infernos que se vai iniciar?

A entrada é com “Sometimes”. O ritmo é avassalador, mas com aquele órgão e aquele baixo, não é punk. E a pretensa violência dos punks é de meninos quando comparada com a que é transmitida pelos “Stranglers”: "Sometimes I get to feel so mean / Sometimes I get to feel so mean / Sometimes you look like you're too clean / Sometimes I see the in-between / Sometimes only one way / I've got to fight". Estamos no interior da percepção de uma mente violenta: o sentimento de maldade é activado por uma diferença estereotipada (“too clean”) e justifica-se por uma percepção (“I see”) e um sentido (“only way…too fight”). Poderia ser argumentário para uma luta revolucionária. Os Stranglers navegam sempre em águas turvas, sem deixar perceber se concordam ou se dizem mal. Provavelmente apenas expõem, deixando à crueza da verdade as despesas da crítica. Numa quadra seguinte, o narrador vai agredir uma moça num local isolado: "You're way past your station / It's useless asking you to stop / I got morbid fascination / Beat you honey till you drop”. Violento? Muito. Apologético? Não, tal como o Guernica não faz a apologia da violência fascista. Põe-a em xeque trazendo-a à evidência sobre outro ângulo.

Em “London Lady” e “Princess of the Streets”, os estranguladores revelam o seu lado machista e misógino, do qual ganharam fama quando exibiram strippers em palco durante os concertos. “London Lady” é uma versão ácida e demolidora da rapariguinha do “shopping”. Descreve-nos uma fulana fútil e idiota: “you're so stupid / foetid brainwaves”. Viram? Ondas cerebrais fétidas. São pouco meiguinhos, são. Tais seres femininos não têm opiniões que interessem e apenas se justificam como objectos sexuais: “please don't talk much / it burns my ears / tonight you've talked for a thousand years”. No entanto, elas às vezes fazem mossa. “Princess of the Streets” é uma canção de despeito – “she's gone and left me / I don't know why” – sobre a mulher dominadora (“with words of fire / she'll make you small / with eyes that smile / she'll make you tall”) que comete a malvada traição de não se nos submeter, preferindo liderar a matilha: “she's no lady / she'll stab you in the back / she's no lady / she's princess of the pack”.

Muito politicamente incorrecto, mas descrito com larga arte. E, convém relembrar, estamos a visitar o inferno.

O pico escatológico do álbum é atingido em “Ugly”, em que verdades dolorosas sobre a importância da imagem pessoal no sucesso social e a sua viciosa relação com o dinheiro são berradas, não cantadas, num rock minimalista e obsessivo. Três exemplos: “besides she had acne / and if you've got acne well I apologise for disliking it intensely / but it's understandable that ugly people have got complexes / I mean it seems to me that ugly people don't have a chance” ou “it's only the children or the fucking wealthy who tend to be good looking” ou ainda “an ugly fart / attracts a good looking / chick, if he's got money”.

Têm toda a razão: qualquer peido com cacau atrai mulherame. Embora dizer tal coisa continue a ser politicamente incorrecto.

O disco segue com algumas músicas só ligeiramente menos pesadas como “Hanging Around” ou “Get a (Grip) on Yourself”, que foram êxitos de venda e de rádio.

Para final apoteótico, os “Stranglers” reservaram-nos “Down in the Sewer”. Uma história sobre um homem com raízes campestres que caiu no esgoto e lá fica a apanhar latas vazias de Coca-Cola. O esgoto pulula de ratazanas agressivas: “there's lots of rats down here / you can see the whites of their eyes / they got sharp teeth / deep breath / and lots of diseases”. Pouco simpático... O esgoto funciona como óbvia parábola desta sociedade que destrói o bom selvagem que há em nós, da “rat race”, da agressividade que endereçamos aos nossos semelhantes e que nos condiciona ao ponto de a instruirmos aos nossos filhos:

“Tell you what I'm gonna do.
Gonna make love to a water rat or two
and breed a family.
They'll be called the survivors.
You know why?
No?
They're gonna survive.”

A faixa é longa de oito minutos e termina com um inesquecível solo de órgão – o “Rats Rally” – por um Dave Greenfield desbragado. E quando pensamos que tudo terminou num som de água a sumir-se pelo ralo, eis que se ouve o Hugh Cornwell a negar-nos, com uma longínqua voz do além, qualquer pensamento de redenção: “I’ll see you in the sewer”.

Rattus Norvegicus foi possivelmente o melhor disco de estreia de sempre, e lançou os Stranglers numa carreira que ainda nos deu, entre outros momentos felizes, mais uma das maiores realizações de sempre da mente humana, o “Black and White” de 1978.

Rattus Norvegicus é uma reportagem fotográfica sobre o lado negro do nosso mundo e da nossa mente. Uma visão dantesca do nosso colectivo moderno. Não propõe curas, exibe meramente os sintomas, de um modo brutal que deveria pelo menos fazer-nos pensar. E isto num formato inovador, esteticamente soberbo e coerente, e com uma valente pedalada. Tudo bom!

sexta-feira, março 16, 2007

Grandes concursos idiotas

Nas minhas férias de verão de há trinta anos atrás, a noite acabava no baile das Festas de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da terra, que animava a noite algarvia até altas horas, numa misturada heteróclita de pessoal da cidade a abanar o capacete, moças da terra a dançar umas com as outras, velhas sentadas em cadeiras trazidas de casa e cães coxos ao cheiro dos caixotes, tudo regado por Sagres e gasosas que boiavam em largos alguidares conjuntamente com barrões de gelo.

Isto passava-se no largo pátio das traseiras da primária, escola de traça salazarista, no meio das casas açoteiadas do bairro dos pescadores. O pátio servia em simultâneo de plateia e de pista de dança e ao fundo montara-se um palco, onde ora tocavam bandas da localidade ou da vizinhança, algumas bastante boas em imitações de Stones e Doors, ora artistas convidados, por regra péssimos, com farfisas mal afinados e cançonetas que arrancavam palmas às velhotas e até velhotas às cadeiras. Por vezes, em anos mais abonados, chegaram-se a exibir vedetas com estatuto nacional: tenho uma memória semi-etilizada de lá ver as Doce a cantar o “põe-me KO”, vestidas de biquini em pele de leopardo, com os gorilas em dificuldades para suster os magotes de bacanos emborrachados e dispostos a subir ao palco para lhes atender o pedido.

Certo ano, algum membro mais empreendedor da comissão organizadora dos festejos teve uma tão brilhante quanto rentável ideia: um concurso de beleza por eleição popular, mas com os votos pagos e a reverter para a junta de freguesia. Dito e feito. Durante os dias de bailarico, a palavra foi devolvida ao povo – desde que este se chegasse à frente, claro. À entrada da festa havia uma mesa de voto onde a urna esperava os papelinhos com os nomes, cada um a dez tostões. Por cima, o quadro negro da escola tinha sido dependurado para ir exibindo os resultados: os do baile anterior e os totais. Noite após noite, os números iam crescendo: Maria Augusta 897, Custódia 678, Zézinha 523. Um sucesso, apesar dos protestos de um bem-pensante local, gorducho e de saco de peixe na mão, que se indignava sonoramente contra a capitalista ideia e até contra o quadro, chamando-lhe “a tabela da carne”.

Rapazotes como eu ainda lá largaram um escudo para ver aparecer no quadro o nome de alguma querida. Mas ter esse gosto não resultava fácil porque rapidamente um grupo de “concorrentes” encetara uma fuga, com votações a atingir números ridículos de grande, açambarcando a superfície da ardósia. Eram filhas de pescadores da terra, que largavam às notas de mil pelo orgulho de levar a sua cachopa ao palco. Se um chegava e via a cria em segunda, toca de pagar para a pôr em primeira. Ao último dia de festa, as do pódio somavam centenas de milhar de pontos ou seja, centenas de contos. Isto, numa altura em que uma pensão de reforma andaria nos dez mil escudos, por aí.

Chegou o momento da celebração e a vencedora subiu ao palco, empurrada pelos pais impantes, corados e felizes pelo retorno do seu ignóbil investimento. Ela teria uns dezasseis anos e era feia, ataviada num vestido domingueiro e fora de moda. Enxovalhada pelos apupos da turba e pelo orgulho pusilânime dos parentes, recebeu o prémio de olhos baixos e escapou-se assim que pôde. Aposto que chorou nessa noite.

Isto acontece quando os concursos são estúpidos e os votos são comprados. A RTP lançou agora um no mesmo género para eleger o maior português de sempre, só não dizendo se ao metro, se ao quilo. Provavelmente com a intenção de tornar a História fácil, como se a História, tal como o amor, não fosse algo que se tivesse que merecer.

Ainda assim, a lista dos dez finalistas não envergonha. Não terá o maior, que é conceito vazio, mas contém grandes: Afonso Henriques, D. João II, Vasco da Gama, D. Henrique, Camões ou Fernando Pessoa e a nota simpática de Aristides de Sousa Mendes.

Alguns outros portugueses que pela sua grandeza não destoariam:

- D. Afonso III, um político hábil e um refinado sacana, que entalou o irmão, entalou a mulher, e entalou os espanhóis no mais ousado acordo diplomático da nossa História, assim se acabando de conquistar o território.

- D. Nuno Álvares Pereira, a maior vitória do nosso imaginário.

- Fernão Lopes, jornalista antes de haver jornais.

- Afonso de Albuquerque, o Leão da Ásia, fez com mil homens o que Bush não faz com cento e cinquenta mil. Sintetizou a noção de dever na célebre “de mal com el-Rei por amor dos homens e de mal com os homens por amor d’el-Rei”.

- Eça de Queirós, simplesmente um dos melhores do mundo e dos tempos na sua categoria. Aliás, disse-o Jorge Luís Borges.

- Visconde de Alvalade, por razões óbvias.

- José Cardoso Pires: à rasquinha, mas merece…

- Eusébio da Silva Ferreira: enquanto o Figo, quando perdeu, atirou a camisola ao chão, ele, quando perdeu, limpou as lágrimas às quinas. Também se é grande na derrota.

- Mário Soares: ele e os seus dois inimigos (Cunhal e Salazar) eram os únicos que tinham uma ideia para Portugal. A dele foi a que venceu. E ele fez por isso.

quarta-feira, março 07, 2007

Só pode ser a gozar!

Parece que o Departamento de Estado norte-americano teceu críticas à situação de direitos humanos em Portugal. Ficamos agradecidos e à espera da contribuição sobre o mesmo assunto do Departamento de Estado norte-coreano, que não poderá deixar de nos ser útil. Ou do saudita…

Ele há com cá uma lata!

Aqui vai para o Departamento de Estado norte-americano: http://www.archiexpo.com/architecture-design-manufacturer/mirror-288.html