sábado, fevereiro 17, 2007

Os teus braços

Dedicated to the one I love...


A casa regresso quando parto
Nela entro assim que saio
O meu suspiro de soslaio
Mira tua porta quando parto

Quando vagueio pelas vielas
Vejo sempre luz em tuas janelas

Vou revendo e não me farto
E quando me julgo mais distante
Percebo que mesmo que errante
Por mais que vá não me aparto

Teus braços são a minha casa
A eles volto sem ter saído
Se mais longe ando perdido
Mais teu sopro aviva a brasa

Se me julgas fora sou presente
Mesmo que alheio não ausente

A minha casa são os teus braços
Regaço de calma prometida
Que qual farol no breu da vida
Alumia a volta de meus passos

domingo, fevereiro 11, 2007

Viver de novo

Um dos grandes paradoxos das nossas vidas reside na impossibilidade de compreender objectivamente os outros, os seus comportamentos e os raciocínios e sentimentos que os movem e motivam. Não estamos dentro deles, não os vivemos, só parcelarmente os compreendemos. Temos deles o entendimento que os prisioneiros da caverna na alegoria de Platão tinham da realidade: vemos sombras, mais ou menos nítidas, que tomamos por seres. E baseados nessa pouca informação, com facilidade os julgamos, correndo risco de erro.

Vale este raciocínio, talvez com mais pertinência, para o modo como criticamos aqueles que nos são mais próximos: os nossos pais. Lembramos acções longínquas, especialmente as que nos envolveram, rememoramos os nossos sentimentos da altura, e sentenciamos: “fizeram muito mal em fazer assim” ou “só pensaram neles, porque deveriam ter feito assado”. Com o tempo, eventualmente, vivemos experiências que nos ajudam a matizar a nossa opinião, desculpamos ou até pensamos compreender. Mas saber, saber nunca sabemos.

Isto a propósito de “Bairro Longíquo”, de Jirô Taniguchi, um livro de banda desenhada japonês que me ofereceram pelo Natal.

Confesso que o recebi com desconfiança, porque tenho dos “manga” uma imagem porventura deturpada. Não consigo impedir que me venham à memória as cenas de infância dos desenhos animados da Heidi, um ser suíço e asséptico (passe a redundância) que corria para o avô aparentemente sem sair do sítio, como se o planeta fosse uma passadeira de ginásio rolando debaixo dos seus pés. A carinha quadrada ostentava um esgar permanente, que tanto dava para sorriso como para choro, consoante o contexto e a vozinha da actriz de serviço, e até as vacas que pastavam ao fundo pareciam mais da encosta do Fujiama que do cantão de Zug.

Mais tarde os nipónicos reincidiram com o Marco, uma versão masculina da Heidi, mas com um enredo tão perverso que, comparado, o “Pesadelo em Elm Street” faz figura de “Branca de Neve e os sete anões”. A mãe de Marco parte para o cu-de-Judas, por razões de que já não me recordo. A dado momento, o Marco, em vez de estar quieto, vai à procura dela. Inicia-se então uma volta ao mundo em oitocentos dias, na qual o coitado do Marco, desafiando a estatística, chega sempre com uma ou duas horas de atraso ao último sítio a onde a mãe era suposta estar. Atravessa o Atlântico para a ver em Buenos Aires. Quando chega, foi-se ela há menos de uma semana para Valparaíso, Chile. Atravessa as pampas e os Andes, sofrendo frio e levando porrada, sempre com o tal esgar em grande plano. Uma vez em Valparaíso: azar! Saiu ontem de paquete para Sidney. Lá vai ele lavar um convés para conseguir alcançar a Austrália. Galo: a mãe, com certeza pelos melhores motivos, zarpou faz pouco para as Novas Hébridas. E assim de seguida… Quem escreveu esta trampa, não haja dúvida que adorava crianças.

Este meu trauma com desenhos japoneses foi ainda mais amplificado quando vi os meus filhos a deliciarem-se com os Pokémon, uma espécie de Heidis e Marcos mutantes e dotados de poderes especiais, o maior dos quais era afastarem-me da televisão. E cada vez que, numa livraria, folheava BDs japonesas, não conseguia deixar de ver a Heidi de soquete branco, o Marco a chegar mais uma vez atrasado a Vladivostoque ou o Pikachu aos pinotes. Por isso nunca comprei.

Mas este, como já o tinha, comecei-o. E acabei as quatrocentas páginas dos dois volumes numa só tirada, praticamente sem interrupções. O estilo, se bem que inequivocamente nipónico, é de uma grande sobriedade, apesar da riqueza do detalhe, numa influência clara de Edgar Pierre Jacobs. Mau grado as oscilações de intensidade dramática do enredo, a atmosfera é sempre serena, quase plácida, induzindo um sentimento de paz que muito contribui para que apreendamos a mensagem principal da história.

Hiroshi Nakahara, um homem de quarenta e oito anos a braços com uma crise de meia-idade, toma por engano (ou talvez não) o comboio errado na estação de Osaka. Por coincidência, este leva-o a Kurayoshi, a sua terra natal. Hiroshi aproveita o tempo até ao próximo trem para visitar a cidade e, no cemitério local, diante do túmulo da mãe, tem um desmaio. Quando recupera os sentidos, o seu corpo é o do Hiroshi adolescente, com catorze anos mas com a vivência e as memórias do homem adulto. Hiroshi vai reviver um ano da sua juventude dessa forma, como um observador externo, meio do presente, meio do futuro.

Para além da maravilhosa dádiva de voltar a viver os seus catorze anos – qual de nós não gostaria? – Hiroshi vai ter a oportunidade de perceber muito melhor a sua relação com os seus pais e os dramas familiares que o marcaram. Isto porque vai vivenciá-los pela segunda vez numa dupla óptica: não só como filho, mas também como adulto, como progenitor e como marido. Esta experiência não o vai ajudar a alterar o destino da sua família, como pretendia, mas vai-lhe permitir compreendê-lo, nas suas raízes e nas suas consequências. E com isso, numa derradeira lição dos pais já desaparecidos, pode inteirar-se do valor da sua própria existência e tomar o seu futuro entre mãos.

Sonho ou realidade? Pouco interessa ao autor. Jirô Taniguchi deixa a dúvida no ar e uma lição no texto: viajemos, na nossa memória, até aos momentos difíceis do passado e, munidos de uma maturidade diferente, saibamos retirar daqueles que nos eram próximos a sabedoria que na altura não conseguimos.