domingo, dezembro 31, 2006

Os hunos no poder

Ontem pela manhã, o meu filho comentou-me: “já foi!”. E eu: “o que é que já foi?”. “O Saddam, foi enforcado, vem aqui na net”, respondeu. Disse-lhe na altura: “tenho sobretudo pena das mulheres e crianças que vão morrer hoje por causa dessa decisão idiota. Essas, acabam de ser condenadas à morte, só que ainda não o sabem”. A meio da tarde andavam nos sessenta, ao fim do dia tinham sido setenta e sete, mortos em atentados em bairros xiitas.

Eu não sou bruxo, não sou é totalmente estúpido. O Iraque tornou-se um caso típico de cegos conduzindo outros cegos.

Ainda por cima parece que já se pode ver na Internet o filme da execução. Provavelmente para que não haja dúvidas. Com este género de exibição na praça pública, vamos regressando paulatinamente à barbárie do circo máximo, do pelourinho ou do cadafalso com a ralé a aplaudir.

Os telejornais comentaram esta execução de um modo asséptico, como quem fala do empate do Desportivo das Aves, utilizando expressões como o “ex-ditador” ou “o tribunal que o condenou” em tom de justificação.

O homem foi um ditador hediondo, do género dos que costumam entrar na Casa Branca, no Kremlin ou no Eliseu pela porta da frente, sempre que tal dá jeito. Só que, e por mais nojento facínora que o tipo tenha sido, a exibição pública de um prisioneiro algemado e de fato cor-de-laranja, o seu julgamento fantoche por um tribunal de vencedores e a morte de um homem, seguida de visionamento planetário pelo You Tube, a mim envergonham-me.

Fico sem saber onde é que posso devolver o meu cartão de sócio da civilização ocidental.


A todos um ano melhor do que este.

sábado, dezembro 23, 2006

Espírito de Natal

Entre as novidades que folheei ontem na Virgin de Orly, aproveitando mais um useiro atraso da nossa companhia de bandeira, seleccionei uma banda desenhada de Jean-Philippe Stassen e Denis Lapière: Le bar du vieux français. Acabei de lê-la. Apreciei muitas BDs, algumas encantaram-me, esta foi das poucas que por momentos me comoveu. Conta a história não terminada de Leila e Célestin, de como os seus caminhos improvavelmente se cruzaram, de como por momento foram felizes e de como foram cada um à sua vida, porque caminhos que se cruzam têm que, por definição, separar-se.

Leila, francesa de segunda geração de imigração marroquina, vive entalada entre o mundo físico ocidental da escola e das suas amigas e o mundo mental muçulmano de pais e irmãos encaixotados num apartamento de periferia, e foge de casa na adolescência procurando um sul ancestral e, julga ela, livre. Célestin, nascido numa cubata da África Negra profunda, órfão como um terço das crianças da aldeia, escapa-se aos oito anos com a irmã para a salvar de uma excisão certa. Esta não sobrevive à caminhada e, a partir daí, Célestin vai continuar a fugir de poiso em poiso, empurrado pela culpa, biscateando para sobreviver, atraído para o norte pelo seu destino. O encontro dá-se num tasco no meio do deserto de Marrocos, propriedade de um francês senil, que nos faz o favor de narrar os acontecimentos.

Le bar du vieux français foi o meu conto de Natal deste Natal. Sem moralismos ou xaropadas, fez-me partilhar um pouco da vida dos que sofrem. Veio lembrar-me que há mais no mundo para emendar do que para deixar como está, coisa de que quase sempre, convenientemente, me esqueço. De certo modo, fez-me sentir pequeno diante daqueles que tendo menos, se contentam e até partilham. Veio indignar-me e ainda bem, porque a indignação não é só o muito falado direito, tem que ser sobretudo uma obrigação: não nos indignarmo-nos, nem que por um momento, com o sofrimento alheio, deveria estar à cabeça da lista de pecados com direito a forno quente no inferno.

E o Natal, ao fim e ao cabo, é suposto andar à volta disto. Celebrar a dádiva e não a compra. Pensar um instante em quem precise. Honrar, seja-se ou não crente, o que é nuclear na mensagem do tipo que nasceu por estas alturas: praticar o Bem, olhar pelos Outros e ser livre de o fazer ou não, o que é uma responsabilidade tramada. Um programa um pouco mais ambicioso do que o natal dos centros comerciais ou dos jantares de empresa.

A Leila e Célestin, vi-os neste Natal como são as Leilas e os Célestins deste mundo: basicamente como nós. E não como os vemos na televisão, como números numa estatística ou paramécias sociológicas numa lamela, cagando e andando. No fim, fiquei como o Chico Buarque da canção: e eu, que não creio, peço a Deus por minha gente.

Feliz Natal.

domingo, dezembro 03, 2006

Mataspeak Intro

Newspeak era a linguagem oficial de Oceania e foi idealizada de modo a ir ao encontro das necessidades ideológicas do Ingsoc, ou Socialismo Inglês”, pode ler-se no apêndice a “Mil novecentos e oitenta e quatro” de George Orwell. “O objetivo do Newspeak era não só o de facultar um meio de expressão apropriado à mundivisão e aos hábitos mentais dos devotos do Ingsoc, mas ainda o de tornar todos os outros modos de pensamento impossíveis. Pretendia-se que, quando a Newspeak tivesse sido adoptada de vez e a Oldspeak esquecida, um pensamento herético- isto é, um pensamento divergindo dos princípios do Ingsoc- fosse literalmente impensável, pelo menos na medida em que necessitasse de palavras.”

Tinha apenas treze anos quando, em 1976, li “O triunfo dos porcos” e “Mil novecentos e oitenta e quatro”, dois livros que marcaram muito o meu modo de ver o mundo. Até hoje. Portugal começava por essa época a estabilização do seu processo revolucionário, que o dividira durante os dois anos precedentes, anos de excessos por vezes mais românticos do que revolucionários, de combates ideológicos de conversa e calçada, em que, parafraseando Thomas Paine, se seguiram mais bandeiras do que ideias. Anos com o seu próprio Newspeak.

Orwell ensinou-me três coisas: que ideias que se reclamam do bem comum podem ser manipuladas e dirigidas por uma minoria em proveito próprio, criando um sistema totalitário sob vestes formais de um regime representativo; que um sistema totalitário procurará os meios mais eficazes para perpetuar o seu poder, os quais passarão quase sempre pela limitação da capacidade crítica das massas controladas, ou seja, nós; e que a nossa mais poderosa arma contra o totalitarismo se encontra “nos poucos centímetros dentro do nosso crânio”.

Estes três conceitos simples, mas potentes, permitiram-me perceber com treze anos aquilo que gente hoje com responsabilidade não conseguiu nessa mesma época entender, pondo-se até a fazer figuras tristes. Coisas tão simples de ver como o não haver justificação possível para as matanças estalinistas, para quem se dissesse democrata. Como o não ser no melhor interesse dos povos apertar o cinto em prol de uma oligarquia partidária. Como o não parecer que o voto de braço no ar fosse a melhor maneira de perguntar ao pessoal o que é que queria ou não queria. Como o ser sempre coisa boa a liberdade. Fico por vezes banzado quando pessoas crescidas como Durão Barroso, Pacheco Pereira ou José Manuel Fernandes, só para nomear algumas, gente que até pode por vezes ser razoável, justificam as suas defesas passadas de algum totalitarismo qualquercoisista com o argumento lamparino que só teriam dezoito-vinte-vinte e cinco anos. Não havia Orwell à mão de ler, provavelmente.

Passados trinta anos, o mundo mudou e eu também. Fiquei mais velho e menos despreocupado. Cometi a imprudência de trazer aqui ao planeta dois tipos que, como todos nós, não pediram para cá estar e por isso ainda me podem vir pedir satisfações. Entretanto, alguns totalitarismos caíram, e bem. Soltaram-se foguetes. Cretinos anunciaram o fim da História. Outras formas de opressão surgiram, umas mais evidentes, outras mais subterrâneas. Caíram as torres e a onda tornou-se má.

Enquanto “Mil novecentos e oitenta e quatro” nos mostra a ditadura no seu estado puro, instalada como um cancro no mais recôndito de cada um de nós, “O triunfo dos porcos” descreve-nos, de forma efabulada, como o totalitarismo se vai cristalizando em pequenos passos, em “já agoras”, em pequenas concessões que são basicamente responsabilidade de todos e de ninguém. Às vezes, tenho um travo amargo na boca que me diz que algo de semelhante está a ocorrer à minha volta. Que pouco a pouco estamos a abrir as defesas e a alienar o que deveria ser inalienável. Que olhamos para as árvores e não só não vemos a floresta, como não prestamos atenção ao restolhar das folhas, que julgamos não ser nada, mas que é a víbora escondida que se prepara para nos ferrar as favolas. Por tudo isto, não me sinto confortável e este blogue será o palco desse desconforto.

Aqui, direi o que penso, sobre o que me apetecer. Darei largas ao que vai dentro dos poucos centímetros dentro do meu crânio. Mataspeak será um lugar de oposição ao actual Newspeak do política e socialmente correcto. Este novo Newspeak, que nos é debitado maciça e diariamente pelos jornais e telejornais, erigidos em púlpitos de igreja quando deviam ser ágoras, confunde aparência com essência ou acção com formação, quando não debate com peixeirada. Sobre este estado da coisa, neste cantinho da rede, afixarei as minhas preocupações e as minhas indignações e os meus argumentos, nem que seja para me ler a mim próprio e clarificar as minhas ideias. Às vezes alongar-me-ei, noutras serei sintético. Os assuntos poderão parecer mais sérios uns do que outros, embora para mim de igual relevo. Também cá porei, se estiver para aí virado, aquilo que, por ser belo, achar que deve ser partilhado, até para parecer um blogue à séria.

Só divulgarei o endereço deste lugar a alguns amigos. Se a eles, ou a alguém que ao acaso aqui passe, fizer bom proveito, ficarei contente. Senão, passem bem ou, melhor, vão-se catar.

Ao longo da vida, fui-me cruzando com pessoas livres ou quase, de olho de falcão, a quem o Newspeak nunca contaminaria. Uns, achei-os em livros: Camus e Queiroz causaram mossa a certa altura, entre muitos. Outros deram-me aulas e recomendaram-me que usasse a cabeça. Ainda de outros, sou amigo ou familiar. Estes últimos, em cada e dado momento, iluminaram-me com a sua presença, chegando a fazer o favor de me alertar quando eu me portei como um idiota.

A eles e a Orwell, que morreu na miséria com pouco mais do que a idade que tenho, dedico este Mataspeak.